domingo, 18 de dezembro de 2011

Metendo o pé na porta : Pilatos, a obra prima antiliterária de Carlos Heitor Cony.

Cotação : 5 estrelas

Em 1972, Cony já era um escritor e jornalista consagrado. Autor de oito romances até então, o último, “Pessach, a travessia”,lançado 5 anos antes, já havia sido um divisor de águas em sua carreira, pois Cony metia a mão no vespeiro que era a luta armada, não necessariamente endossando sem críticas a causa esquerdista. Mal sabiam seus leitores e admiradores , que a grande ruptura de Cony ainda estava por vir. Naquele ano, ele colocou o ponto final em sua grande obra. O mais iconoclasta de seus romances, o que seria o seu pedido irrevogável de demissão da literatura.
Ruy Castro em seu “O Leitor Apaixonado”, dedica a seguinte descrição a “Pilatos” :
“(...) Uma narrativa absurda, pornográfica, escatológica, um romance para acabar com os romances que ele ainda podia ser tentado a escrever. Um salto sem rede, um suicídio literário, e a prova de que falara sério nos livros anteriores, que já apontavam para a falta de sentido da família, da sociedade e do resto.”
            Definitivamente, “Pilatos” era tudo isso e muito mais. Sua editora ficou 2 anos se decidindo em publicar ou não o livro, só o fazendo em 1974, assustada com a virulência do romance.
 A história de um personagem totalmente à margem da sociedade, praticamente um mendigo, que teve o seu órgão genital decepado em um acidente e, que desde então, o carrega em uma compota e o defende como o seu maior bem, é recheada de momentos genialmente elaborados, causando por vezes choque e repulsa, mas também profunda admiração pela plenitude de um autor no amplo domínio de sua habilidade literária. Além, é claro, de muito, mas muito, humor. Esse talvez seja o traço mais marcante do livro.
            Ao personagem principal, se juntam outras figuras bizarras que o acompanham em suas aventuras pelo submundo do Rio de Janeiro : Um fascista priápico, com veleidades de escritor (talvez por isso, batizado de Dos Passos); um jovem esquerdista permanentemente desligado; um aristocrata falido que faz suas necessidades em uma lata de margarina e um velho demente e esfomeado, que por várias vezes tenta surrupiar o falo da compota, supondo ser uma salsicha.
            Como bem disse Otto Maria Carpeaux, “Pilatos” não tem paralelo em nenhum outro trabalho do autor, quiça, de qualquer outro da literatura brasileira ou universal. Com algum esforço, podemos identificar ecos desse mesmo espírito demolidor em alguns livros posteriores, como o recente “Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes  ou ainda “Confissões de Ralfo”, de Sérgio Sant`Anna. Talvez, alguns títulos de Pedro Juan Gutierrez ou de Bukowski possam compartilhar dessa mesma esfera.
            Cony pretendia uma interrupção definitiva de suas atividades de ficcionista. Quase conseguiu. Seu silêncio durou 22 anos até a publicação do premiado e tocante “Quase Memória”. A partir daí voltou à ativa, embora seja na verdade um novo autor. Um renascimento.  Ninguém lava as mãos impunemente.

sábado, 26 de novembro de 2011

A paixão maior da crítica mais temida do Brasil.


Cotação : 3 estrelas

Certa vez, ao ser entrevistada por Marília Gabriela, Bárbara Heliodora foi questionada sobre o porquê de se criticar uma peça logo na estréia, se, sabidamente para aqueles que militam no Teatro, um espetáculo só fica efetivamente pronto após um bom número de encenações. Sua resposta foi de um pragmatismo desconcertante : “ Se abriu o Teatro e estão cobrando ingresso...”
Essa franqueza tem feito ao longo das últimas quatro décadas, a carioca Bárbara Heliodora Carneiro de Mendonça, filha do ex craque, presidente do Fluminense e goleiro da Seleção Brasileira, Marcos Carneiro de Mendonça, se firmar como a principal crítica teatral do país. Seus temidos veredictos podem abreviar ou glorificar carreiras encenações, notadamente quando essas se debruçam sobre o maior dramaturgo da história e especialidade da autora : William Shakespeare.
“ O Homem político em Shakespeare” tem como base a tese de doutorado de Bárbara, defendida em 1975, na Escola de Comunicações e Artes da USP. Em uma análise tão sofisticada quanto acessível, é defendida a preocupação Shakesperiana em retratar o ambiente sócio político inglês e europeu do século XVI , investigando tanto a as origens filosóficas (com especial dedicação à influência das homílias religiosas) da formação intelectual do bardo inglês quanto à demonstração da visão política do autor em vários momentos de suas peças históricas.
Embora destinado a um público já com um certo grau de conhecimento da obra Shakesperiana, o livro pode e deve ser lido por quem ainda não se aventurou por suas peças. Serve como uma espécie de guia para ajudar a entender e a apreciar um dos marcos fundadores da arte cênica mundial, destacando seu forte viés político. DE quebra, Bárbara Heliodora ainda nos presenteia com um breve passeio pela história da Monarquia Inglesa entre os séculos XIV e XVI. Erudição pura ao alcance das massas.

domingo, 20 de novembro de 2011

Paulo Francis foi pro céu.


Cotação : 5 Estrelas

Assim como boa parte de seus leitores, tive uma relação complicada com Paulo Francis. Até 1992, a imagem que tinha do jornalista era a de uma figura de fala engraçada, muito imitada em programas humorísticos, que comentava coisas que não me diziam respeito em um noticiário a que eu não assistia, o Jornal da Globo.
A partir daquele ano, com a transferência de sua coluna bissemanal “Diário da Corte” para o jornal “O Globo” , pude enfim conhecer as idéias do veterano escriba. Foi ódio à primeira vista.
Preconceituoso, elitista, declaradamente de direita e polemista profissional, Paulo Francis fazia de sua tribuna um mural de provocações , muitas vezes batendo abaixo da linha da cintura sem qualquer constrangimento, quando por exemplo, grafou o nome do cineasta Cacá Diegues como Cocô Diegues. Antijornalismo total.
Paradoxalmente, a minha repulsa pelos conceitos emitidos por Francis, não me fazia deixar de ler sua coluna, em uma espécie de masoquismo intelectual. Na verdade, apesar de seus muitos defeitos, o grande atrativo do seu trabalho era o de abrir um leque infinito de opções culturais. A cada domingo (o único dia em que lia a sua coluna, também publicada às quintas), havia um mosaico de citações de escritores, dramaturgos, cineastas, intelectuais, políticos. Era praticamente impossível se manter imune a toda essa exposição de erudição. Por vias tortas, Francis provocava a elevação do gosto, quando muito da curiosidade de seus leitores. O engraçado é que só após a sua morte, e com o vácuo provocado pela extinção da coluna, pude perceber isso.
O breve perfil escrito com maestria por Paulo Eduardo Nogueira, não absolve Paulo Francis. As suas (muitas vezes) irresponsáveis opiniões (uma delas provocando o justo processo de Joel Rennó, ex presidente da Petrobras, o que para muitos provocou a sua morte), pouco afeita aos fatos, têm tanto espaço quanto a defesa de suas (poucas) qualidades gerando, junto com o belo documentário “Caro Francis”, de Nelson Hoineff (2009), um retrato fiel de uma das figuras mais importantes da imprensa brasileira no século XX.
Nos anos 90, havia uma banda de rock carioca batizada de “Paulo Francis vai pro céu”. De fato, a bancada celeste de polemistas ganhou um nobre representante.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Silvio Luiz- O Dono da Bola

Cotação : 5 estrelas

O talento de Silvio Luiz vai muito além do jornalismo esportivo. Basta dizer que ele começou em televisão em 1953, atuando como contra regra, produtor, ator, diretor e quase todas as funções que possíveis em uma emissora. Ingressou na TV Record ainda nos anos 50 (iniciou na TV Paulista), e participou do auge da emissora na década de 60 produzindo musicais ao lado de Miéle e Ronaldo Bôscoli, aliás foi nessa fase que conheceu a cantora Márcia, sua esposa até hoje.
No início dos anos 70, Silvio foi convocado por Carlos Manga para fazer parte de um dos mais emblemáticos programas da história da televisão, o famoso "Quem tem medo da verdade? ". Consistia de uma espécie de "julgamento" de uma personalidade, em que Carlos Manga fazia ás vezes de juiz e o júri, formado entre outros por Silvio Luiz, atuava quase como uma promotoria, acusando e não raro, humilhando os participantes, levando muitos às lágrimas (casos de Leila Diniz e Grande Otelo, por exemplo). Silvio era o mais raivoso deles. O vilão daquele programa, síntese do mundo cão.
Em 1977, a Record, em lenta decadência, é adquirida pelo grupo Silvio Santos e começa a investir em esportes. Silvio, então um desmotivado funcionário da emissora, aos 43 anos volta a trabalhar com futebol, ele já havia sido repórter em diferentes ocasiões, e no início da década, foi juiz da Federação Paulista. Aí começa uma magnífica história digna de ser relatada naquele quadro final da novela "Viver a Vida". A Record monta uma pequena equipe com Silvio como narrador, Flávio Prado, jornalista iniciante como repórter e Hélio Ansaldo como comentarista (mais tarde viria o lendário locutor paulista Pedro Luiz, o Lorde). Silvio, inspirado em Chacrinha, transforma as transmissões em verdadeiros shows, incluindo sonoplastia, brincadeiras, bordões inusitados ("pelas barbas do profeta", "pelo amor dos meus filhinhos") e muito, muito humor, arrebatando uma multidão de fãs, principalmente entre as crianças que começavam a acompanhar o velho esporte bretão, como esse leitor que vos escreve.
Wagner William relata com precisão e honestidade a trajetória única do irreverente locutor, não escondendo os seus inúmeros defeitos, mas realçando as virtudes de um dos mais admiráveis narradores que o Brasil já viu. O autêntico "dono da bola".

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

André, Gordo e um grande momento do romance policial carioca.

Cotação : 5 Estrelas

À primeira vista, Flávio Carneiro, autor de “O campeonato” parece um sujeito tímido, que não tem muito a dizer. No debate da série “Prosa nas Livrarias”, em dezembro de 2009, em que dialogou sobre o romance policial com Luiz Alfredo Garcia Roza, criador do Delegado Espinosa, Flávio falou pouco, parecia mais um espectador que um palestrante. Qual não foi minha surpresa ao me deparar nas páginas de “O Campeonato”, com um autor eloqüente, de raro domínio narrativo e muito, muito engraçado! O romance já nos ganha de cara, ao fazer de André, o protagonista do livro, um detetive acidental, um voraz leitor de romances policiais, que para dar asas à sua delirante imaginação resolve fazer um curso de investigação por correspondência, e com a ajuda do amigo Gordo, também um leitor incurável, parte para o único caso lhe é atribuído: o desaparecimento de um jovem de 15 anos.
No decorrer da obra, as deliciosas referências literárias (uma delas, sobre Rubem Fonseca, justifica o título do livro), são o pano de fundo para as rocambolescas voltas da trama que nos guiam a um final imprevisível. E o que é melhor, sempre  com o sotaque carioca que também marca presença nas aventuras do supracitado Espinosa. Que venham mais histórias de André e Gordo, já que em “O Campeonato”, Flávio Carneiro levou o título, com louvor.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

E Viva o Lado B

Cotação : 5 Estrelas

Na era da informação, em que a música vem de um lugar invisível, na forma nada palpável de arquivos digitais insípidos, é quase um alento descobrir que os Discos (esses mesmos, com D maiúsculo) ainda podem salvar muitas vidas. A minha foi salva várias vezes.
Alexandre Petillo juntou um grupo de jornalistas e artistas de primeiro time para falar de suas bolachas preferidas. O resultado é delicioso e variado. Vai de Bob Dylan a Jorge Ben (que teve o mesmo disco, “A tábua da Esmeralda”, de 1974, citado duas vezes!! O único a conseguir tal feito.), passando por Caetano e Beatles. Por sinal, os quatro de Liverpool são responsáveis por algum dos momentos mais bonitos do livro, notadamente a introdução, em que o autor relata que ganhou como seu primeiro álbum uma coletânea da banda e, desde então, entrou no mundo Beatle e nunca mais saiu mais de lá. Sublime.  Uma obra para ser lida em alto e bom som.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Pena que acabou.

Cotação : 4 Estrelas

"No fim das contas, o tema principal desta história não são nem os espiões nem os organismos secretos dentro do Estado, e sim a violência de todos os dias cometidas contra as mulheres, e os homens que tornam isso possível."
O desabafo de Mikael Blomkvist na página 627 de "A Rainha do Castelo de Ar", parte final da trilogia Millenium, talvez seja a mais exata tradução do espírito da genial saga criada por Stieg Larsson. Dos três livros, esse é o que o único que não tem uma existência independente, ou seja, é uma sequência imediata dos acontecimentos do volume 02, o auge da série.
Os amigos de Lisbeth, Mikael à frente, travam uma batalha para provar a inocência da hacker lutando incessantemente contra uma organização semi-clandestina da polícia nórdica.
Larsson abusa dos detalhes sobre os bastidores do serviço secreto sueco, jogando o romance em um turbilhão que lembra em muito as intrigantes tramas do injustiçado Frederick Forsythe, na minha opinião, um dos mestres do gênero. Apesar dessa "gordura" que aumenta exponencialmente o número de personagens (com destaque para Rosa Figuerola), "A Rainha" é um capítulo final digno dessa grande criação, que marca de forma definitiva a moderna literatura policial internacional. Pena que acabou.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Romancista do Povo


Cotação : 5 estrelas.

Difícil falar de Jorge Amado o que já não tenha sido dito, de uma forma ou de outra. "Capitães da Areia", um de seus clássicos, traz à tona a atmosfera popular que seria a inspiração maior da sua obra : os marinheiros dos cais, as prostitutas, os trabalhadores pobres e , claro, as crianças de rua, em uma denúncia visionária (o livro é de 1937) do problema. Isso tudo temperado pelo pano de fundo ideológico, que durante alguns anos (até a série "Os Subterrâneos da Liberdade", publicado nos anos 50) seria ingrediente da receita do autor, mas aqui , ao contrário do que aconteceria em outros livros, não enfraquece o texto, pelo contrário, o torna ainda mais veemente.
Sua prosa fácil e direta (influência de sua experiência jornalística ?) elegem "Capitães da Areia" como uma das principais referências literárias adotadas pelas escolas de todo o Brasil. Merece o posto.

domingo, 9 de outubro de 2011

Um Gênio de carne e osso.


Cotação: 4 Estelas.
O mundo Beatle é uma fonte inesgotável de matérias, filmes, documentários, análises e biografias. Philip Norman talvez tenha escrito o mais importante trabalho sobre um integrante do grupo individualmente. Já tarimbado pela elogiada "Shout" (biografia do grupo publicada no início dos anos 80), Norman consegue recriar Lennon mostrando toda a genialidade e os inúmeros defeitos do homem e do mito. Ficamos sabendo detalhes sobre a conturbada relação com seu pai (Lennon tem um irmão, fruto do último relacionamento de seu pai, nascido nos anos 70), a imensa dor que o abateu após a morte da mãe, a amizade com Stu, salpicada de lances polêmicos, um deles, diga-se de passagem sem qualquer tipo de comprovação, envolveria um suposto espancamento brutal de Stu por Lennon e que teria propiciado o aparecimento do tumor que o matou, a obsessão Yoko Ono, a gênese da banda, a disputa com Paul, etc.

Um livraço que resume a dor e a delícia de ter sido um dos maiores nomes do século XX.

domingo, 2 de outubro de 2011

A Trilogia segue cada vez melhor.

Cotação : 5 Estrelas

Se no primeiro volume Lisbeth Salander rouba a cena, aqui não há qualquer motivo para tal, uma vez que ela é a própria alma do livro.
A trilogia que colocou a Suécia no mapa moderno da literatura internacional, segue ainda mais palpitante em "A Menina que brincava com fogo". Dessa vez, o passado da jovem hacker vem à tona em uma trama que consegue ser melhor que a do primeiro livro da série : "Os Homens que não amavam as mulheres". As mais de 600 páginas do romance trazem surpresas ao ampliar ( e muito!) o espectro das aventuras de Mikael e Lisbeth, como a abordagem sobre o tráfico de mulheres na Europa e a entrada dos magníficos personagens policiais, ausentes da obra inaugural.
" A menina que brincava com fogo" também é mais ousado, abordando sem pudor os aspectos mais intímos da vida dos personagens, notadamente da genial (e geniosa) hacker.
Enfim, tudo se encaixa, de maneira harmoniosa, em uma das melhores narrativas policiais dos últimos anos, que pode, inclusive, ser lida independentemente da primeira parte, já que todos os eventos relevantes de "Os Homens" que são essenciais para se acompanhar o novo enredo, são de algum modo "resumidos".
Um livro que é sugado a cada página, envolvendo o leitor em um turbilhão que literalmente lhe tira o fôlego.A única "pulga atrás da orelha" é a aparentemente desconexa primeira parte da história, que, a princípio, não teria qualquer ligação com o restante do livro. Seria uma prévia do volume 03 ?

domingo, 18 de setembro de 2011

Entra a bola e a garrafa.

Cotação : 5 Estrelas


Em dezembro de 2009, em um debate na ABI, Ruy Castro afirmou que logo após ter publicado a biografia de Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico), pensou em escrever sobre o alcoolismo, a partir de algum personagem quer houvesse sofrido com a doença. O nome de Garrincha veio quase que instantaneamente.Em dezembro de 1995, poucos dias após o livro ter sido lançado e já com as notícias sobre a possível proibição da obra (o que se confirmaria no ano seguinte), comprei meu exemplar e fui totalmente absorvido pela triste história do camisa 7 botafoguense. É praticamente impossível não se emocionar com a derrocada de um ídolo contada em riqueza impressionante de detalhes. A cada avanço de páginas, a vontade de voltar no tempo e evitar o fim anunciado, era quase que irresistível. Cheguei a sonhar com o livro e reli inúmeras passagens ao longo desses anos. "Estrela Solitária" ultrapassa a barreira dos que gostam de futebol. É um livro sobre o drama humano, que nâo poupa os heróis ou semideuses. Páginas imortais de um dos nossos maiores escritores

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A Suécia na primeira divisão do romance policial.

Cotação : 5 Estrelas.


Para aqueles que só se lembravam da Suécia como um país distante onde o Brasil ganhou o seu primeiro título mundial de futebol, ou ainda por ser a terra famosa pelas louras desinibidas, "Os Homens que não amavam as mulheres", o primeiro volume da trilogia Millenium de Stieg Larsson, coloca o país na primeira divisão da literatura policial.
Larsson morreu em 2004 sem testemunhar o sucesso mundial de sua criação. Era um típico jornalista gauche, retratado por seu alter ego no livro, o intrépido Mikael Bromkvist, responsável pela revista Millenium. O jornalista denuncia as práticas desonestas de um famoso financista, mas é condenado por difamação, o que quase arruina sua carreira e a de sua publicação. Quase ao mesmo tempo, se envolve na investigação do desaparecimento de uma jovem integrante da poderosa família Vangler, em troca de provas que possam salvar sua reputação.Este é o enredo básico mas as surpresas e reviravoltas dão à história um atmosfera única de mistério e emoção presentes nas grandes narrativas policiais. Mas apesar de todas essas qualidades, o grande gol de placa de Stieg Larsson foi a criação da personagem Lisbeth Salander.
A jovem hacker, quase punk, que auxilia Mikael a desvendar os mistérios da obra, é uma verdadeira atração à parte. Sua figura ilumina toda a trama e pode desde já integrar o seleto grupo dos personagens símbolo do gênero. Ela praticamente "rouba" o livro.
Uma pena que a saga de Lisbeth e Mikael fique limitada a três livros.Larsson tinha ainda muito a contar sobre as aventuras desses personagens ímpares.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O Grito do Ipiranga libertado do quadro.

Cotação : 4 Estrelas

Laurentino Gomes segue na sua relevante empreitada de desmitificar a história oficial a traduzindo para uma linguagem jornalística moderna, proporcionando ao grande público o acesso à informações antes restritas aos círculos acadêmicos.
A julgar pela lista de best sellers, o autor vem atingindo o seu objetivo, iniciado com o excelente "1808", e prosseguindo agora com a publicação de "1822".
Apesar de serem obras "gêmeas" de inegável qualidade, "1822" talvez se situe um degrau abaixo de seu antecessor. Se em "1808" a apuração minuciosa e sem pressa, bem como a independência da cultura universitária foi um trunfo, em "1822" nota-se uma certa aproximação reverente à Academia, que se transformou em subjugação, como se Laurentino pedisse licença aos Mestres e Doutores universitários para escrever um livro de divulgação científica sobre a história do Brasil. Essa impressão me é reforçada com as inúmeras citações inseridas em cada capítulo que, apesar de concederem solidez às informações, tiram muito do prazer literário tão abundante em "1808". Talvez a urgência em se produzir um sucessor que mantivesse aquecido o filão aberto pelo primeiro livro, explique essa recorrência exagerada às fontes oficiais.
Mesmo assim, "1822" é uma publicação fascinante, que traz à realidade a clássica imagem do "Grito do Ipiranga", libertando-a da cena imaginada por Pedro Américo.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Todos são iguais; alguns mais iguais que outros.

Cotação : 5 Estrelas.

Me considero uma pessoa de esquerda. A princípio, ler uma fábula sobre a Revolução Comunista Russa de 1917, escrita por um conhecido partidário da direita e conservador, como George Orwell, não me traria grandes emoções a nâo ser satisfazer a minha (parca) curiosidade intelectual. Ideologias à parte, " A Revolução dos Bichos" é uma obra prima.
A história dos porcos que dominam a fazenda, onde antes são "apenas" animais de criação, vale para todas as revoluções do mundo, sejam elas de direita ou de esquerda. O que de início se reveste de igualdade, em pouco tempo mostra a sua verdadeira face de intolerância e centralismo.Orwell capta de forma seminal esse espírito, fazendo uma crítica contundente, universal e , certamente, eterna. Prezar a igualdade, de certa forma, é respeitar as diferenças.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Os Documentos e os Instrumentos da Biltz.



Cotação : 5 Estrelas


Rodrigo Rodrigues, aquele gordinho Tijucano que pilota o Bate Bola segunda edição na ESPN Brasil, resgatou 27 anos depois do estouro, a história da banda que deu o pontapé inicial na onda do Brock que tomou de assalto as paradas do início dos anos 80. Eu estava lá, vi e ouvi.
A trajetória da banda começa na verdade no fim dos anos 70, quando Evandro Mesquita e Patrycia Travassos (que embora nunca tenha feito parte da formação, sempre atuou nos bastidores, inclusive como compositora e diretora de alguns shows) batiam ponto no grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, celeiro de outras futuras estrelas como Regina Casé e Luis Fernando Guimarães.  Nessa época, com trânsito fácil entre música e teatro, Evandro conhece o guitarrista Ricardo Barreto e começam, de forma despretensiosa, a levar um som. Em seguida, se juntam a Lobão, que fazia parte do grupo de apoio da cantora Marina. O embrião da Blitz estava formado.
Por sinal, o amalucado baterista (posição original de Lobão, que só em carreira solo assumiria a guitarra), foi o criador do nome do grupo, já que os caras viviam tomando duras naquela período pós hippie.
Por influência de Júlio Barroso e sua Gang 90, a formação incorpora duas backing vocals, o que daria um charme e um diferencial notável às músicas, em suma, permitiria que o vocal “falado” de Evandro tivesse uma resposta à altura. A musa Márcia Bulcão e a garota sangue bom Fernanda Abreu deram o colorido que faltava. O avião estava pronto para decolar.
Com a formação cristalizada, os shows no circuito alternativo carioca (incluindo o recém aberto Circo Voador, em seu início no Arpoador), logo, levaram a um destaque no meio. A EMI, esperta no lance, foi lá e contratou. O primeiro compacto, “Você não soube me amar”, jogou a banda nas alturas. O primeiro LP a jogaria nas Galáxias, mas, antes disso, Lobão, em um ato quase suicida, resolveu sair para lançar o seu disco solo, embora, em uma atitude que até hoje repercute, tenha participado da histórica sessão de fotos que colocou a Biltz na capa da “Isto É”, garantindo para si mesmo a mídia necessária para o seu disco a ser lançado.
O ano de 82 foi todo da banda, com apresentações quase diárias na televisão, culminando com a participação na tradicional festa da chegada de Papai Noel no Maracanã lotado. Eu estava lá também.
A brincadeira durou 3 discos e foi até o final de 1985, incluindo aí a histórica apresentação no primeiro Rock in Rio. O dinheiro, a fama, as exigências do sucesso acabaram desgastando a relação entre os componentes e o que era uma diversão acabou virando um emprego. Fim da linha para a Blitz.
Já nos anos 90, Evandro voltaria com a banda, que, desde então, em esquema novamente alternativo contando com várias formações, se reúne ocasionalmente para shows de revivals e eventuais discos. No detalhado e bem apresentado volume (que segue o ótimo projeto gráfico dos almanaques da Ediouro) , Rodrigo Rodrigues faz a história da Blitz descer redonda, como chopp com batatas fritas. Descem dois.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Um tostão de sua voz.

Cotação : ****

Em 1981, eu era um molecote de pouco mais de 6 anos e que se divertia  com os programas "Reapertura"(ainda que não entendesse a lógicas das piadas políticas e sacanas) e "Alegria 81". A Velha Surda, defendida com brio por Rony Rios; o faxineiro, inesquecível criação de Tutuca; os vários tipos e imitações do craque Geraldo Alves; Maria Tereza; Consuelo Leandro, etc. Mas, para mim, a grande atração mesmo era aquele "galã", de óculos enormes e roupas espalhafatosas, que sacava uma mandioca a cada abordagem às beldades do programa. Foi a minha primeira lembrança de Zé Bonitinho, a criação mais célebre do genial Jorge Loredo, ainda hoje um representante autêntico da fase áurea do humor televisivo.
O pequeno perfil publicado pela série Aplauso, escrito pelo jornalista Cláudio Fragata, resgata um pouco de sua longa e vitoriosa carreira. Em primeira pessoa, Loredo conta sem rodeios que boa parte de sua vida foi marcada por alguns dramas ocultos ao público pelo som das gargalhadas provocadas por seus personagens. O ator sofreu de Osteomelite  por mais de 30 anos, o que o levava à constantes internações (que duravam meses), o afastando do trabalho na TV e no escritório (Loredo sempre manteve uma carreira paralela de advogado). Também não teve pudores ao revelar o seu problema com o álcool, superado graças à ajuda dos AA.
Essa mini biografia joga um pouco de luz sobre um período fundamental na consolidação do humor em nossa TV: a passagem entre as décadas de 50 e 60, quando a TV Rio e (um pouco mais tarde) a TV Excelsior lançaram as bases de tudo que se faria no gênero pelos 30 anos seguintes. Jorge Loredo e seu Zé Bonitinho foram protagonistas dessa história.


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A mitológica trajetória da Pequena Notável


Cotação : 5 estrelas.

No dia 5 de agosto de 1995, estava eu matando aula na faculdade, sozinho, no antigo cinema Palácio 1, na Cinelândia, conferindo a estréia de "Banana is my business", documentário sobre Carmen Miranda, dirigido por Helena Soldberg.
Naquele dia, precisamente 40 anos depois da morte da Pequena Notável, pude enfim saciar parte da minha curiosidade sobre o ícone brasileiro. As vitórias e os dramas da cantora foram recontados com precisão e paixão pela diretora.
Dez anos depois, me surpreendo pela notícia de que a nova biografia de Ruy Castro versava justamente sobre Carmen. Comprei o livro assim que o vi nas lojas, no começo de dezembro de 2005, e pude, mais uma vez, testemunhar o talento incomum do autor para contar as histórias verdadeiras, muitas vezes opostas às imagens públicas de alegria, de alguns de nossos mitos culturais.
O livro recria todo o ambiente de malandragem do Rio antigo, onde Carmen foi criada, após ter vindo bem pequena de Portugal,despertando o seu interesse para a música popular que então tomava forma.
Ruy acerta ao atribuir o extraordinário sucesso da cantora à feliz associação de um repertório genuinamente popular (alimentado por Synval Silva, Assis Valente, Dorival Caymmi, Joubert de Carvalho, autor de "Taí", seu primeiro grande sucesso, Sinhô, Noel, Ary Barroso, entre outros) ao furor provocado pela massificação do maior meio de comunicação até então inventado, o rádio. Na esteira de tudo isso, a instalação de uma verdadeira indústria fonográfica (que aposentava as primitivas gravações mecânicas da década de 20, substituindo-as pelo novíssimo processo elétrico) alçaram a Pequena Notável ao posto de ídolo.
Sua ida para os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que a colocou em um patamar quase mítico, ao lado do Mickey Mouse e do símbolo da Coca Cola, a diminuíram como cantora, já que a produção made in USA que passou a ser a base de seu repertório, não se comparava aos sambas e marchas que gravara no Brasil.
O caráter de novidade de sua figura extravagante, explorado nos inúmeros musicais da Fox rodados em technicolor, se esgotaria no pós guerra. A partir daí, Carmen seria "apenas mais uma" atriz estrangeira das produções americanas. Deixaria de fazer parte da elite da Fox e serviria como "escada" para comediantes consagrados , como os irmãos Marx, ou iniciantes, como o jovem Jerry Lewis.
Apesar dessa aparente "decadência", a cantora não pensava em voltar, sua vida estava plantada nos EUA, onde morava em um dos bairros mais elegantes de Los Angeles, ao lado de boa parte da família, vinda do Brasil.
Nessa fase, a artista começa a se sentir amargurada, tanto pelo sonho cada vez mais longe de ser mãe, como por arrastar um casamento infeliz com o americano David Sebastian, que, aparentemente interessado apenas em seu dinheiro, gerenciava a carreira de Carmen quase como um predador, negociando shows em Night Clubs e participações em caravanas pelo país, quase que diários. Essa rotina levou a artista a um processo de depressão, culminando com uma dependência de tranquilizantes e , nos períodos mais críticos, à internações em sanatórios com tratamentos à base de choques elétricos.
No final de 1954, Carmen está à beira de um colapso. Como último recurso, sua família, apoiada pelos médicos, resolvem a trazer de volta ao Brasil, ainda que para uma curta estada.
Em dezembro de 54, a estrela volta ao país após 14 anos. Se isola no Copacabana Palace onde, aos poucos, em contato com os velhos amigos e o ambiente de sua terra, parece recobrar o ânimo.
No início do ano já é vista em festas e concede rápidas entrevistas à imprensa. Conhece o maracanã e alguns dos novos cantores que despontaram após sua partida, reencontra os velhos companheiros, enfim, retorna à vida. Participa ativamente do carnaval de 1955, quando é saudada pelo público como nunca tivesse se afastado. Esse banho de vitalidade, leva alguns de seus familiares e amigos a pedirem pelo seu retorno definitivo. Era difícil. Existiam vários compromissos já agendados nos EUA. Era preciso retornar à roda viva do show business.
Além desses compromissos, havia ainda um pequeno detalhe que poderia vir a ser o renascimento profissional de Carmen Miranda. Nos anos 50, a televisão rapidamente se popularizava. Velhos astros do cinema, já sem espaço nos estúdios, migravam para a nova mídia com grande sucesso. A personalidade exuberante de Carmen parecia talhada à perfeição para o revolucionário veículo. A migração de sua carreira para a telinha parecia um caminho natural.
Infelizmente o que parecia ser o seu novo palco, foi testemunha do seu canto do cisne. Em 4 de agosto de 1955, uma sexta feira, Carmen gravava ao lado do anfitrião, uma participação especial no Jimmy Durante Show, transmitido pela NBC. Em meio a uma dança com o apresentador , Carmen para e cai. A orquestra interrompe a música, Carmen leva mão ao peito e reclama de falta de ar. A gravação logo recomeça, se encerrando com Carmen saindo por uma porta. Seria sua última imagem viva. Naquela madrugada, a cantora morreria em sua casa. Foi encontrada caída em seu quarto, segurando um espelho quebrado.
Seria enterrada uma semana depois, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Em uma das maiores manifestações populares da história da cidade.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Ao Mestre com Carinho.


Cotação : 4 Estrelas.

O futebol costuma ser impiedoso com aqueles que não chegam ao olimpo, vide o processo de esquecimento a que foi submetido o time brasileiro de 1950, vice campeão mundial, e mais precisamente o arqueiro do elenco, o genial Barbosa, que viveu condenado à sombra daquela derrota.
Felizmente toda regra tem exceção. O time de 82, uma das mais belas equipes de futebol já montadas, vem há algum tempo sendo reverenciada apesar de ter caído nas quartas de final, diante da Itália de Paolo Rossi. O arquiteto daquele time, Telê Santana, ganhou uma biografia emocionada de André Ribeiro, jornalista com larga experiência em futebol, autor também da biografia de Leônidas da Silva.
Desde o início como jogador, no interior de Minas, passando pela consagração no Fluminense dos anos 50, Telê já havia feito a sua opção como incansável defensor do futebol arte. Levaria essa filosofia para sua carreira de treinador, sendo campeão no próprio Fluminense (carioca -1969), no Atlético Mineiro (Brasileiro-1971), no Grêmio (Gaúcho-1977), além de uma excelente passagem pelo Palmeiras (1979) em que carimbou o seu passaporte para a Seleção brasileira. A fatalidade de 5 de julho de 1982, no estádio Sarriá, impediu a consagração daquela geração de craques, que teria ainda uma última chance, 4 anos mais tarde, em terras mexicanas. Caímos nos penâltis, diante da forte equipe francesa , liderada por Platini.
No entanto o destino seria generoso com Telê. Ao desembarcar no São Paulo futebol clube, em 1990, o treinador daria início à fase mais vitoriosa da história do tricolor paulista, culminado com duas taças libertadores e dois títulos mundiais. O futebol pagou com juros e correção monetária a enorme dívida que tinha com Mestre Telê

quinta-feira, 21 de julho de 2011

A morte à espreita nos ares.

Cotação : 5 Estrelas.

Ivan Sant´Anna é um sujeito incomum. Durante quase quatro décadas foi um bem sucedido executivo do mercado financeiro, até que em 1995, deu um novo rumo à sua vida : largou tudo e foi ser escritor.
Talvez cedendo ao chamado do DNA, pois é irmão de Sérgio Sant´Anna, um dos  nossos mais aclamados ficcionistas e tio de André, um ícone da famosa “ geração 00”, Ivan se dedicou às letras com afinco, surgindo daí a sua primeira incursão no terreno da ficção, “Rapina”, um trillher, com todos os elementos dos best sellers internacionais.
 Embora bem escrito, “Rapina” deixa explícito um certo caráter comercial, que logo num primeiro momento, situou esteticamente a obra de Ivan em campo oposto aos escritos do irmão e do sobrinho.Por tudo isso, apesar de ter lido “Rapina” (que tem como tema o mercado financeiro, cenário tão conhecido do autor), nunca experimentei uma grande curiosidade sobre a obra de Ivan, ao contrário da profunda admiração que me faz alinhar entre os fãs de Sérgio.
Esse “preconceito” começou a mudar no início desse mês ao me deparar com uma matéria na revista Piauí, número 57, em que Ivan faz um longo e minucioso relato sobre o acidente envolvendo o Boeing da Gol, ocorrido em setembro de 2006. Fiquei impressionado não só pela riqueza dos detalhes, como pela clareza e a qualidade do texto.
Para quem não sabe, a Piauí é provavelmente o que de melhor há em jornalismo impresso no país. Suas matérias são referências em termos de bom jornalismo, mais especificamente do que se convencionou chamar de Jornalismo Literário. Não tive mais dúvidas : ali estava um autor de primeiro time.
Por coincidência, poucos dias depois, ao flanar pela feirinha de livros que voltou a ser montada na Praça Seans Pena (Tijuca- Rio de Janeiro), me deparo com o primeiro livro de não ficção de Ivan, lançado em 2000, e que trata, assim como na matéria da Piauí ( que na verdade é uma prévia de seu próximo livro), de acidentes aéreos, “Caixa Preta”.
Definitivamente, preconceito é coisa das mais atrasadas. Por conta disso, perdi 11 anos para conhecer o livro. Trata-se de uma obra prima.
Aviação é um tema caro à Ivan pois é uma de suas paixões, já que ele foi aviador amador durante muitos anos. Essa intimidade com a causa, aliada à uma obstinação profunda na busca de detalhes e entrevistas com personagens, temperada por uma veia fantástica de escritor, capaz de transformar as mais de 300 páginas de “Caixa Preta”  em um filme de aventura ( e , em muitos momentos, de terror), fazem a leitura fluir na mesma velocidade e emoção dos acontecimentos narrados.
Ivan investiga três dos acidentes mais terríveis da história da aviação brasileira : O primeiro (e mais famoso) foi o do vôo RG-820 que em julho de 1973 fazia a rota Rio- Paris e, poucos momentos antes de atingir o aeroporto de Orly, na capital francesa, foi acometido por um incêndio e teve que descer em uma horta nos arredores da cidade. Nesse acidente, morreram, entre outros, o cantor Agostinho dos Santos, o Senador (e Chefe do Dops durante o Estado Novo), Filinto Muller e o narrador esportivo da TV Globo, Júlio Delamare.
A segunda parte relata o seqüestro do vôo VP-375, que ao fazer o trecho Belo Horizonte- Rio de Janeiro, em setembro de 1988, foi desviado para Brasília por um trabalhador desempregado, armado com um revólver 38, e que, enlouquecido, queria jogar o avião contra o Palácio do Planalto. Aqui destaca-se a figura mais marcante do livro, o piloto (e herói) Fernando Murilo, a quem “Caixa Preta” justamente é dedicado.
Por último há o desesperador acidente do RG-254. Ocorrido quase um ano depois do seqüestro do VP-375, exatamente no dia em que o Brasil vencia o Chile no Maracanã , se classificando assim para a Copa do Mundo de 1990.
Saindo de Imperatriz, no Maranhão, rumo à Belém, um erro primário cometido pelo comandante, desviou o avião por mais de 1000 quilômetros da rota. O boeing ficou horas perdido sobre a floresta, até que teve que teve que aterrisar (cair seria o termo mais correto) sobre as árvores da mata fechada do interior do Mato Grosso. O inferno vivido por tripulantes e passageiros é recontado em detalhes apavorantes.
Disso tudo, o que mais chama a atenção na primorosa obra de Ivan Sant´Anna e talvez seja o grande motivo de ela ser tão especial, é a dimensão humana que o autor consegue dar as tragédias. Em cada relato (baseado nas investigações e sobretudo no testemunho dos sobreviventes) os pequenos dramas da vida de cada um não são negligenciados. Ao avançar das páginas, vamos conhecendo aquelas pessoas e, não raro, se emocionando e torcendo por elas. Infelizmente, para muitos a torcida não surtiu efeito.
Como se não bastasse, há ainda um minucioso levantamento do que aconteceu aos sobreviventes após os respectivos acidentes, além do levantamento completo das fontes que fundamentam o livro.
Uma obra seminal, que testemunha os segundos angustiantes em que a vida entra em luta corporal com a morte. Tudo registrado pelas caixas pretas.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O uivo afinado do Lobo.

Cotação : 4 Estrelas.

Engraçado. Sempre tive a sensação de que Lobão era muito mais incensado por suas polêmicas aventuras do que por seu talento musical.
Apesar de músico precoce, pois aos 17 já respondia pelas baquetas do Vímana, grupo de rock “nacional progressivo” (se é que algum dia isso existiu) que contava ainda com dois futuros astros do boom do pop-rock brazuca dos anos 80, Ritchie e Lulu Santos, João Luiz Woenderbag Filho já naquela época (meados dos anos 70) mostrava que, a exemplo do Velho Guerreiro, vinha mais para confundir do que para explicar : Foi o responsável direto pela morte do grupo ao se envolver com a mulher de Patrick Moraz, o tecladista do Yes, que havia resolvido largar a banda mundialmente famosa para tocar com a garotada brasileira. Seria a primeira das muitas confusões envolvendo o Lobo ensandecido.
Em paralelo com a sua “agitada” carreira, Claudio Tognolli (co- autor do livro) arranca de Lobão depoimentos marcantes sobre a sua acidentada trajetória familiar, culminando no difícil relacionamento com o pai e no suicídio da mãe. Talvez parte da inquietude da persona publica do músico possa ser explicada por esses episódios.
Voltando à arte, Lobão narra a sua convivência com amigos fundamentais, como Marina, Cazuza e Júlio Barroso (fundador da breve Gang 90), a sua entrada na Blitz (o nome foi sugestão sua) e a saída ruidosa, com a banda no auge (fator até hoje de desconforto com Evandro Mesquita), passando pelo início da carreira solo pontuada por guerras com as gravadoras e a militância nas drogas, que lhe deu à aura eterna de marginal, ratificada pelas prisões em série que sofreu.
Um bom livro, que passa a limpo uma vida singular, movida a excessos e paixões desmedidas. Exagerado, como o amigo Cazuza.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Manual de otimismo.


 Cotação : *****

“Todo fim de ano traz uma crescente quantidade de informações que fortalece uma tese que defendo há muito tempo: há, no Brasil, um número muito maior de pessoas que se dedicam a melhorar a vida de seus concidadãos do que o punhado de gente que, em Brasília, trabalha em sentido contrário.”
O trecho acima, retirado da página 174 de “Histórias do Brasil Profundo”, ilustra de forma clara o objetivo primordial da obra : divulgar as inúmeras iniciativas desenvolvidas país afora, documentadas ao longo dos anos por Márcio Moreira Alves em sua antiga coluna no Globo, hoje ocupada por Merval Pereira.
Márcio, falecido em abril de 2009, cuja atuação política ficou marcada pelo famoso discurso proferido na Câmara dos Deputados em 68, utilizado como pretexto para o AI-5, nos dá o emocionado testemunho de quem fez do colunismo político uma trincheira permanente de combate aos males que assolam o país. Publicada de terça a sábado, o jornalista dedicava a última coluna da semana justamente para injetar essa dose de otimismo, destacando as boas ações de (alguns) governos e da sociedade civil organizada no intuito de apontar um caminho a ser seguido. Esses artigos são a base de “Histórias” e também gerariam ainda outros livros, como o sugestivamente intitulado “Sábados Azuis”.
Há ainda uma declaração de princípios que esclarece a posição de Márcio Moreira Alves em relação a aspectos formais do jornalismo moderno, como nesse exemplo, retirado da página 178 :
“Eu não invento nada. Só conto o que vejo. Até mesmo com os políticos me comporto assim. Acredito em tudo que eles me contam. Só que não publico. Ou, se o faço, dou nome aos bois.Essa história de passar informações anônimas adiante, creditando-as a “altas fontes do Planalto”, não é comigo.Altas fontes do Planalto são chafarizes nos jardins do segundo andar. As outras têm nome, telefone e número de sala.”
            Mas o que interessa e encanta nessas histórias do Brasil profundo, é mesmo a constatação de que um outro país é possível, independentemente de partidos e políticos, como salienta o próprio autor :
           
“Devagar, o povo vai construindo um Brasil diferente.”

Fé e Luta.

Um dos mais influentes intelectuais do país, Frei Betto, ao publicar “Batismo de Sangue”, prestou um inestimável serviço à nossa Literatura histórica. Seu relato sobre a caçada implacável a Carlos Marighela e o calvário de Frei Tito, expuseram de forma crua a ainda incômoda ferida dos anos mais duros da Ditadura Militar. Há uma percepção clara de que os abnegados que pegaram em armas contra o governo, no fundo, mais do que uma pretensa guinada comunista, queriam de fato uma sociedade mais igualitária, imbuída dos princípios mais básicos do cristianismo, daí talvez o envolvimento tão radical dos dominicanos com as várias organizações de esquerda do período, em especial com a ANL.
O autor, apesar de personagem central de boa parte dos acontecimentos tratados na obra não se furta a jogar luz sobre a trajetória de companheiros, que em maior ou menor grau, se martirizaram em uma luta, que desde o seu início, se configurava em ato quase suicida.
Não é de todo absurdo, entender “Batismo de Sangue” como a tradução literária  do título Glauberiano, “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, onde o delegado Sérgio Fleury encarnaria à perfeição o mítico animal em perseguição mortal à Frei Tito. Este último, por sinal, após sofrer as mais terríveis torturas físicas e mentais, sofreria por anos a fio as seqüelas da repressão. A narrativa da perda progressiva de sua sanidade talvez seja o momento crucial do livro. Exilado, distante de sua luta e de seu país, Frei Tito permaneceria em solo francês embora sua alma seguisse encarcerada no DOP’s paulista, sofrendo as sevícias impostas pelo dragão Fleury. A liberdade só viria com o ato extremo. Tito descerrou sua alma enlaçando uma corda no pescoço. Seu martírio terminara.
A aridez daqueles tempos, quando contada com o lirismo de Frei Betto, pode até desencadear em alguns desavisados o sentimento de ter se aventurado sobre as nuvens da ficção. Infelizmente estão errados. Foi tudo verdade.