segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

"Se você tiver de morrer, é melhor morrer no Times."



Cotação : 4 estrelas

A frase acima, de autoria de A.M.Rosenthal, resume a importância da seção de obituário em um dos maiores veículos da mídia impressa mundial, o New York Times.
A editoria, vista durante muitos anos como uma espécie de deserto do bom jornalismo, para onde alguns poucos condenados eram enviados a fim de cumprir suas penas, ganhou relevância à medida que passou não só a se ocupar de figurões das artes ou da política, e se debruçou sobre a vida de pessoas comuns que, em algum momento , fizeram coisas incomuns. Isso tudo embalado por um texto salpicado dos requintes do "jornalismo literário", essa entidade difícil de classificar, mas fácil de reconhecer em qualquer texto que fuja da camisa de força do lead e incorpore os elementos que fazem da palavra escrita um raro prazer. "O livro das Vidas", organizado por Matinas Suzuki Jr, está repleto deles.
É claro que a variedade de autores e personagens acaba por dar uma certa irregularidade ao conjunto da obra. Alguns podem não ser tão interessantes aos olhos do leitor brasileiro. Por outro lado, há uma penca de figuras que despertariam curiosidade em qualquer parte do mundo: Edward Lowe, que acidentalmente inventou o Kitty Litter e deu novo rumo à domesticação de gatos; Stanley Adelman, notório mecânico de máquinas de escrever, que salvou o instrumento de trabalho de dezenas de escritores famosos; Albert P. Blaustein, o advogado judeu que ajudou a formatar as constituições de um sem número de países; Herbert Huncke, ladrão, viciado e garoto de programa que inspirou muitos artistas da geração beatnik; Douglas Corrigan, o tresloucado aviador que ao zarpar da Costa Leste Americana rumo à Los Angeles, "errou" a rota e foi pousar na Irlanda...

Todas essas trajetórias acabaram capturadas pela sensibilidade e talento dos melhores jornalistas a serviço do NYT. O livro pode ser entendido como uma sincera homenagem a esses operários da escrita, embora, há um claro destaque para um deles: Robert McG. Thomas Jr, autor da maioria dos textos do livro e, ironicamente, tema do último obituário selecionado para "O Livro das Vidas". Felizmente a palavra escrita permanece para muito além da morte.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O Diretor em close.


Cotação : 5 estrelas

Se compararmos o processo de criação da teledramaturgia, em especial de seu produto mais típico, as novelas, com o cinema, a figura do diretor tende a ter uma porção consideravelmente menor de reconhecimento em relação a autores e atores. Experimente lembrar de primeira, sem recorrer a qualquer fonte de consulta, os atores principais de uma novela icônica, como Vale Tudo, por exemplo ? É provável que você se lembre de alguns (Antônio Fagundes, Beatriz Segall) e , além deles, do autor, Gilberto Braga. Pouquíssimos devem ter memória de que aquele grande sucesso foi dirigido por Dennis Carvalho.
A lógica muda radicalmente quando falamos de cinema. Em geral, e por mais que disponha de atuações destacadas e a despeito do roteiro, um filme é em última instância uma obra de diretor. Nesse aspecto, pode-se dizer que Walter Avancini foi talvez o mais influente ( e cinematográfico) realizador da teledramaturgia brasileira. Em todos os trabalhos em que esteve envolvido, deixou de forma indelével a sua marca.
Em “O Último Artesão” ( Gryphus, 2005), a atriz e jornalista Ângela Brito coleta 52 depoimentos de atores e técnicos que trabalharam com Avancini em sua longa trajetória televisiva, composta por passagens pela Excelsior, Tupi, Bandeirantes, SBT, Manchete e Globo.
Há alguns anos, ao rememorar o começo de sua carreira, Regina Duarte afirmava que a sua formação de atriz, basicamente desenvolvida na televisão, foi inteiramente moldada pelo diretor com quem trabalhou em nove oportunidades, incluindo aí a mais emblemática telenovela estrelada pela “namoradinha do Brasil”, Selva de Pedra. O depoimento de Regina, uma das entrevistadas no livro, dá uma tônica do que seria uma impressão quase unânime em relação à Avancini : alguém de inegável valor, capaz de formar atores, mas ao mesmo tempo, um diretor de métodos extremamente duros. Capaz de melindrar os mais sensíveis e exasperar a equipe , levando todos ao limite. Tudo pela verdade de uma cena.
Não era incomum que ele interrompesse uma gravação, que a seu critério não corria a contento, e provocasse deliberadamente os atores envolvidos, há relatos inclusive de discussões pesadas que quase chegavam à agressão, só para deixá-los raivosos. Quando o trabalho era retomado, o desempenho, impulsionando pelo estado emocional alterado, geralmente era de qualidade superior. Tática de guerra a serviço da arte.
Chega a ser curioso como os depoimentos são coincidentes sobre determinadas características obsessivas de Avancini : atores não podiam ensaiar com o texto à mão, que devia ter sido estudado com antecedência; jamais sentar ou descansar na mobília ou demais componentes de cena; não eram admitidas conversas ou brincadeiras entre a equipe técnica e os atores, estes últimos deveriam estar em atmosfera plena de concentração. No caso de violação dessas ou outras regras, o lado carrasco aparecia : broncas homéricas distribuídas democraticamente, desde o funcionário da limpeza até a estrela consagrada.
Mesmo com essa aura de tensão e cobranças permanentes, o saldo da leitura de “O último Artesão” é o de que a oportunidade de trabalhar com Avancini foi um divisor de águas na carreira dos profissionais entrevistados para a obra.
Certa vez, Janete Clair afirmou que a vida de qualquer pessoa daria uma novela. Walter Avancini foi além : fez da novela a sua vida.