sábado, 29 de dezembro de 2012

Descendo do umbuzeiro


Cotação : 5 estrelas


Uma história ocorrida na infância ilustra com perfeição a personalidade política de Getúlio Vargas.

Em uma tarde de 1896, o velho Manuel Vargas recebia em sua estância alguns correligionários em uma das intermináveis reuniões políticas que promovia. De repente, um estrondo chama a atenção de todos. O fazendeiro corre até a sala e vislumbra o retrato de Júlio de Castilhos, o grande líder caudilho gaúcho, caído no chão e semi-destruído. De imediato, o coronel Vargas parte raivoso atrás de quem cometeu o “atentado”. O autor era seu filho, então com 14 anos. Getúlio Dornelles Vargas brincava com um amiguinho da mesma idade, o moleque Gonzaga, negro agregado da fazenda, quando aconteceu o acidente. Certos de que tomariam uma surra inesquecível, Getúlio e o amigo sobem em um grande umbuzeiro nos arredores da propriedade, onde esperariam a poeira baixar.

Seu Manuel ordena aos peões que procurem os dois garotos para que sofram um corretivo. A fazenda é vasculhada, mas ninguém se lembrou de olhar nos galhos do umbuzeiro. Ao anoitecer, a raiva inicial dá origem à preocupação. Getúlio e Gonzaga haviam sumido. Do alto da árvore, o futuro governador do Rio Grande, Ministro da Fazenda e Presidente, acompanha o nervosismo do pai e o desespero da mãe em sua procura, até que no dia seguinte, penalizado pelo sofrimento dos dois, decide que já era hora de descer e, para alívio geral, é recebido com festas e lágrimas. Ninguém lembrava mais do castigo ou do pobre retrato de Júlio de Castilhos.

Pois bem, ao longo de mais de quatro décadas de vida pública, essa foi a tônica da atuação de Getúlio Vargas : esperar até o momento mais adequado para “descer do umbuzeiro”.

Lira Neto, que já se encontra no patamar dos nossos grandes biógrafos, ao lado de Ruy Castro e Fernando Morais, dá em “Getúlio- 1882-1930”, o passo inicial para a construção de um painel definitivo da vida e obra da personalidade mais importante e enigmática da história do Brasil até aqui. O próprio autor, no lançamento carioca do livro, ocorrido em maio de 2012, no Palácio do Catete, contou que esse era um velho projeto de Luís Schwarcz , o proprietário da Companhia das Letras, mas que devido à dimensão monumental da biografia, havia inibido tentativas anteriores. Escolado pelos excelentes mergulhos na vida de Maysa , Padre Cícero e de Castello Branco, Lira Neto topou o desafio.

As mais de 600 páginas desse primeiro volume traçam de maneira obsessiva todo o cenário que formatou a gênese política de Getúlio. O caudilhismo, as lutas gaúchas, aliados às ideias positivistas e aos meandros da república velha, dão ao leitor um retrato inédito do caldeirão que originou o político de São Borja.

O trabalho também é valorizado pela consulta incessante às fontes primárias, o que permitiu desfazer um equívoco histórico repetido à exaustão por outras obras que tratam de Getúlio, o suposto estupro de uma índia, seguido do assassinato de um índio, ocorrido no começo dos anos 20 e que seria atribuído a Vargas por anos a fio. Lira localizou o processo original e desfez o engano. Tratava-se de um homônimo. Gol de placa.

O autor joga luz sobre todos os aspectos do Getúlio pré 1930, estranhamente ausente dos livros escolares, o que nos permite perceber que Vargas foi sim um político fruto da República Velha e que aproveitando seu extraordinário senso de oportunidade, pegou carona no tenentismo e  no vento de mudança que representava a Revolução de três de outubro. Pelos 24 anos seguintes, o velho caudilho repetiria esse movimento muitas vezes, aguardando o momento certo de descer do umbuzeiro, como naquela tarde de 1896.


sábado, 24 de novembro de 2012

Manifesto Antimanicomial


Cotação : 3 Estrelas


A bela edição da Planeta, parte integrante da coleção Biblioteca Invisível (2004), traz a público mais um título de um escritor seminal, tal como Van Gogh, ignorado e desprezado em vida, incensado e estudado nessas nove décadas desde o seu passamento.

Impossível não se emocionar com o drama crônico da vida do carioca Afonso Henriques de Lima Barreto. Nascido pobre, filho de um tipografo e de uma dona de casa, Lima Barreto perdeu a mãe quando tinha menos de 2 anos de idade, e , aos 20, teve que abandonar a Escola Politécnica, onde cursava Engenharia, para ser arrimo de família, pois o pai enlouquecera quase de súbito. Não seria a primeira vez que a doença mental cruzaria o seu caminho.

Enfrentando o forte preconceito social e racial da época, o mulato Lima iniciou o seu longo caso de amor com o jornalismo e literatura, fazendo colaborações regulares  com pequenas publicações e já abrindo caminho para a veia modernista que banharia a sua produção na ficção.

Infelizmente, os percalços de uma vida sofrida e em constantes apuros financeiros, além da pouca repercussão de seu trabalho junto à intelectualidade de então, empurraram Lima para um lento processo de auto destruição, embalado pelo vício cruel do alcoolismo. “Cemitério dos Vivos” é o volume que reúne as memórias do escritor de um período compreendido entre o final de 1919 e o começo de 1920, em que ele, já bastante deteriorado pela doença, esteve internado no antigo Hospício Nacional, atual Instituto Pinel, após uma crise que o faz vagar em delírio pelas ruas do Engenho de Dentro, bairro em que morava, justamente na noite de natal. Mais triste impossível.

Poucos relatos teriam a contundência da fria observação de Lima sobre a perda gradual de humanidade sofrida pelos doentes mentais naquelas primeiras décadas do século passado. Ironicamente, a vida lhe fazia caminhar em espiral pela tragédia. Primeiro, sendo espectador privilegiado da loucura do pai, mais tarde, observando e registrando lucidamente a sua agonia, na mesma direção apontada pela sina hereditária.

Embora imerso em seu drama, Lima Barreto não fecha os olhos aos companheiros de infortúnio, descrevendo em detalhes as manias, os devaneios, as inquietações dos genérica e pejorativamente tratados como “malucos”. O livro é complementado pelas notas esparsas reunidas originalmente pelo autor com o intuito de romancear aquela experiência, tentativa que ficou inacabada.

Na verdade, a força avassaladora do relato, e que poderia tranquilamente ser um manifesto contra a luta antimanicomial , prescindia desse exercício, em mais um triste de exemplo de que a realidade, na maioria das vezes, é mais assustadora que a ficção.


domingo, 21 de outubro de 2012

Em nome do prazer...de ler !!!


Cotação : 5 estrelas.


A curiosidade é matriz do trabalho jornalístico e poucos assuntos “excitam” (sem trocadilho) tanto a imaginação do público quanto o sexo. Daí, a iniciativa certeira do jornalista Miguel Icassatti ao organizar alguns dos melhores textos já publicados sobre o tema em vários órgãos de imprensa do país.

                “Um Sábado no Paraíso do Swing” é uma ode ao que se convencionou chamar de jornalismo literário. Craques de várias gerações de redações, escrevem com precisão, rigor apurativo, leveza e humor sobre questões que  abordadas por penas menos talentosas, poderiam facilmente descambar para a vulgaridade pura e simples.

                A matéria que batiza o livro, por exemplo, é uma irresistível narrativa de Marcelo Duarte (titular do “Loucos por Futebol”, na ESPN e autor do excelente “Guia dos Curiosos”) sobre uma reunião de casais swingers em um clube fechado, onde ocorria com naturalidade trocas de casais e sexo grupal. Duarte simulou ser um casal com uma colega jornalista para ter acesso ao grupo, mas , em comportamento profissional, não participou das “brincadeiras”.

                Outro destaque é a revelação dos bastidores do sexo em Brasília, por Marcos Emílio Gomes, reportagem que explicita a relação sempre estreita entre o sexo e o poder. O volume avança sobre preferências ortodoxas, como o Sadomasoquismo, comenta a surpreendente indústria do sexo japonesa, ilumina os cenários escuros das produções pornôs e desvenda os corredores de casas de massagem, velhos cabarés e boates dedicadas à prostituição, por sinal, a atividade profissional mais antiga do mundo, é tema recorrente em perfis de rara sensibilidade que vão muito além dos clichês.

                Icassatti também acerta ao escolher dois textos clássicos que merecem entrar em qualquer antologia jornalística independentemente do tema : a revelação da verdadeira identidade do cartunista Carlos Zéfiro, realizada por Juca Kfouri para a Revista Playboy e considerada pelo próprio como a sua maior façanha na profissão, e a histórica entrevista do Pasquim com o mítico Madame Satã, realizada em 1971 pela equipe estrela do jornal (Sérgio Cabral, Paulo Francis, Millor Fernandes, Jaguar, Fortuna, Paulo Garcez e Chico Júnior) e republicada na íntegra. Só esses dois textos já justificariam a cotação máxima creditada ao livro.

                No entanto, se fosse para escolher apenas um entre os muitos destaques dessa coletânea essencial, ficaria com o brilhante “ Loja de Brinquedos para Adultos”, em que o jornalista Guilherme Pinha Pinto (precocemente falecido, em 1996, aos 47 anos) disseca o dia a dia de uma sexshop para a edição de setembro de 1995 da Playboy. Simplesmente sublime.

Entre tantos textos que se debruçam sobre os vários aspectos da atividade que mantêm a existência da humanidade, o leitor pode estar seguro que de uma forma ou de outra atingirá o êxtase, ainda que literário.


domingo, 14 de outubro de 2012

Na terra dos gigantes



Cotação : 5 estrelas


Experimente pesquisar, em uma livraria real ou virtual, a quantidade de títulos que versam sobre futebol : biografias, memórias, perfis, romances, ensaios e até teses acadêmicas em profusão farão o deleite de quem é fã do velho esporte bretão. Existe até uma  loja, a Folha Seca, localizada no Rio de Janeiro,  quase que inteiramente dedicada ao assunto. Nem sempre  foi assim.

Até bem pouco tempo atrás, havia um fosso intransponível entre o mundo das letras e o universo da bola. Raros eram aqueles que, fora das páginas dos jornais esportivos, se dedicavam em letra de forma ao futebol como tema. Mário Filho, com “O Negro no Futebol Brasileiro” e “Viagem em torno de Pelé”, pode ser considerado um pioneiro nesse quesito. Em 1965, a ele se juntaram João Máximo e Marcos de Castro, com a publicação de “Gigantes do Futebol Brasileiro”.

Lançada pouco antes da Copa da Inglaterra, a obra rapidamente se esgotou e, em parte devido ao fracasso da Seleção na terra da Rainha que inibiu uma nova edição e pela falta de visão de outras editoras, virou quase que uma lenda  por sua raridade e importância.

Só agora, 46 anos após sua edição original, “Gigantes” volta às livrarias, embalado em um moderno e belíssimo projeto gráfico, bem como enriquecido por novos personagens que, ao longo do desenvolvimento do nosso futebol nas últimas cinco décadas, fizeram por jus ter suas histórias também registradas.

É claro que todo o processo de escolha, quanto mais se tratando de tema tão passional, traz muitos questionamentos. Isso inclusive já havia acontecido em 65, quando os autores ignoraram o Mestre Didi, bicampeão do mundo,  e Ademir, o Queixada, herói vascaíno. Essas duas ausências, as mais sentidas na primeira edição, são lamentadas por Máximo e Castro que agora pagam com juros e correção monetária tais omissões. Ambos os perfis foram os primeiros a serem incluídos.

Além de Ademir e Didi, outros sete “gigantes” se juntam ao elenco original, são eles : Gérson, Rivelino, Tostão, Falcão, Zico, Romário e Ronaldo.  Já os perfis pré existentes, Friendenreich, Fausto, Domingos da Guia, Leônidas, Tim, Romeu, Zizinho, Heleno, Danilo, Nílton Santos, Garrinhcha e Pelé, foram reescritos.

Antes que alguns mais críticos perguntem por Reinaldo , Zagallo, Pepe, Canhoteiro,  Dida ( o do Flamengo , não o goleiro), Sócrates, Júnior, Djalma Santos, Carlos Alberto Torres, Paulo César Caju, os goleiros Gilmar ( o campeão de 58 e 62), Castilho, Barbosa e tantos outros, os autores esclarecem que os 21 “eleitos” não são necessariamente os maiores jogadores brasileiros de todos os tempos, nem os únicos gigantes, são só aqueles que, por motivos diversos, foram escolhidos para que suas histórias fossem imortalizadas em livro. De fato, talvez 10000 páginas seriam ainda insuficientes para registrar toda a grandiosidade do nosso futebol.

Por ora, resta afirmar que o relançamento de “Gigantes do Futebol Brasileiro” traz de volta às prateleiras um título essencial para se entender e admirar a dimensão mítica da paixão maior do nosso povo, elemento indissolúvel de nossa alma tupiniquim.


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Cantando Aldeias


Cotação : 4 estrelas


“Cante sua aldeia e cantarás o mundo”.

O mote que segue ilustrando a obra de diversos autores ao redor de planeta, é particularmente interessante quando aplicado aos chamados escritores regionalistas, que despontavam no cenário brasileiro na década de 30. Raquel de Queiroz, por ser mulher e pela pouca idade por ocasião de sua estréia, com o “O Quinze”, foi, de longe, a mais inusitada dentre os seus companheiros de geração, que incluíam Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e , embora muita mais dedicado à política que à literatura, José Américo de Almeida.

Muito já se falou de “O Quinze”, obra clássica, pule de dez nas listas de vestibulandos e que pode ser uma síntese do tema maior abordado ao longo da obra da autora cearense : os sofrimentos e angústias do homem nordestino, tanto no seu caráter social (se aproximando de Amado), quanto psicológico (seara de Graciliano).O que poucos sabem, é que Rachel nos raros momentos em que se afastou dessa atmosfera, ainda assim, a autora manteve uma linha tênue de ligação entre as suas obras mais típicas. “O Galo de Ouro” é um exemplo claro dessa premissa.

O livro foi escrito sob encomenda, para sair em capítulos pela Revista “O Cruzeiro”, no ano de 1950. Seu cenário é a Ilha do Governador, então um bairro afastado da região metropolitana do Rio de Janeiro (em tempos pré-Linha Vermelha e de uma incipiente Avenida Brasil, então chamada de Variante) que serve como símbolo do Rio suburbano de então, repleto de malandros, sincretismo religioso, jogo do bicho, policiais corruptos. Uma mistura folclórica que, a princípio, teria pouca ou nenhuma relação com o árido Nordeste da esfera ficcional da autora e, é justamente aí, nessa receita de unir elementos estranhos à sua formação para construir um grande romance que se disfarça de folhetim, é que está a mágica da ficcionista.

O personagem principal é Mariano, que logo no início, perde a jovem esposa em um acidente, ficando com uma filha recém nascida para criar. As tentativas de refazer sua vida, trabalhando em vários empregos e se aventurando em um novo casamento, é o drama que move “O Galo de Ouro”. Mariano, em seu sofrimento de excluído social, nada fica a dever às criações de Jorge Amado e Graciliano, que, no fundo, embora ambientadas a milhares de quilômetros da Ilha do Governador, contam a mesma história, focada nas crenças e esperanças do homem do povo.

A maestria de Rachel de Queiroz permite também comparação com Nelson Rodrigues, mestre do mundo ficcional suburbano, que também fez uso do roamnce-folhetim para apurar os dramas da gente comum.

Um livro raro, de uma autora consagrada, que mesmo longe de sua aldeia, cantando terras alheias e personagens estranhos, canta, magistralmente, o mundo.


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Muita vassoura, pouco trevo.


Cotação : 3 estrelas


De vez em quando, nos deparamos com livros que partem de premissas interessantes e originais, porém, por inexperiência do autor, pecam na exposição de suas idéias. Esse parece ser o caso de “O Trevo e a Vassoura”.

Escrito por Gabriel Kwak, jovem jornalista que estudou o tema em sua pós graduação, o livro traça um paralelo entre dois dos mais importantes políticos de São Paulo no século XX :  O ex-presidente Jânio Quadros, que tinha a vassoura como símbolo eleitoral, e Adhemar de Barros, que foi prefeito e governador do estado, tendo fundado e liderado uma corrente política (o Adhemarismo) e que usava o trevo como símbolo.

Para uma leitura simplificada da história oficial, Jânio Quadros, estigmatizado pela renúncia à Presidência em 1961, que levou o país, em ultima instância, ao golpe de 1964, acabou caracterizado como instável e pouco confiável. Alguém que sofria , para usar um jargão psiquiátrico, de uma bipolaridade política, capaz de fazê-lo agir de forma intempestiva, surpreendendo até mesmo seus aliados de primeira hora.

Por outro lado, o médico Adhemar de Barros, apesar da realização de grandes obras que mudaram a paisagem da cidade, passou a ser sinônimo de improbidade administrativa. O slogan “rouba, mas faz”, cunhado por adversários, relegaram o adhemarismo a uma bandeira do atraso e do descompromisso com a ética pública. É notável que o episódio conhecido como “o assalto ao cofre do Adhemar”, já contado em inúmeros livros e que consistiu na roubo de milhões de dólares do cofre mantido pelo político na casa de sua amante (conhecida pela alcunha “Dr.Rui”), no Rio de Janeiro, ação impetrada por grupos da esquerda armada em 1969, cause aquele sentimento comum expresso no ditado popular, afinal de contas, “ladrão que rouba ladrão...”

Embora em grande parte verdadeiros, esses reducionismos na interpretação dos papéis históricos desempenhados por Jânio e Adhemar, não devem contaminar o pesquisador, talvez aí resida a casca de banana em que escorregou Kwak.

Ao longo das mais de 300 páginas do volume, o jornalista não esconde um olhar um pouco mais caridoso ao ex-presidente, que, inclusive, é objeto da maior parte do livro. Para Adhemar , o autor utiliza até mesmo adjetivos vulgares (como “escroque”), que desnudam a sua postura tendenciosa diante do personagem, gerando um evidente desequilíbrio na avaliação dos perfis.

Envergar a linha da neutralidade em direção à vassoura, ainda que seja um pecado, não tira totalmente o valor da obra, que mesmo assim, é um documento importante para aqueles que se interessam por nossa história política, notadamente, pelas correntes populistas do século passado.

Quem sabe, será uma bela porta de entrada para futuros estudos que aprofundem o tema, dessa vez com uma visão mais sóbria, que coloquem o trevo e vassoura sobre a mesma prateleira.

 

domingo, 12 de agosto de 2012

O Mar Serenou



Cotação : 5 estrelas



Eu me lembro de Clara, vestida de branco, descalça, com os cabelos revoltos, dançando , girando e cantando no palco do "Cartas e Cartazes", quadro final do Programa Raul Gil, no SBT, por volta das 6 da tarde de um sábado qualquer de 1982. Para um criança de 7 anos, a visão era algo perturbadora, mas a intensidade da imagem não deixava dúvidas : tratava-se de uma força da natureza.

Lembro também de meu pai ouvindo no rádio as matérias sobre o velório de Clara, na quadra da portela, em abril de 83. Essas lembranças se misturam aos discos de vinil, estampados com o selo da velha Odeon, que eram empilhados a tantos outros como Roberto Ribeiro, João Nogueira e Paulinho da Viola ( da mesma gravadora), além do imbatível Martinho da Vila (esse, da RCA Victor)que se alternavam na trilha sonora lá de casa.

A agonia da cantora foi acompanhada feito novela, com direito até mesmo a um esquemático desenho, exibido no Jornal Nacional, contando como ela, em coma profundo após um choque anafilático em meio a uma operação para retirada de varizes,se agarrava inconscientemente ao tênue fio de sua vida, mantida aquela altura por aparelhos. Do lado de fora da clínica, hordas de fãs se juntavam a místicos, amigos (entre os quais se destacava a então Baby Consuelo, atual Baby do Brasil, mandando "rás de positividade e luz" para Clara), parentes e jornalistas, na atmosfera meio circense de uma longa vigília.
Essas enevoadas e confusas memórias vem à tona após a leitura de "Clara Nunes", a densa biografia escrita por Vagner Fernandes que nos revela uma outra Clara, a ainda tímida cantora iniciante, vinda do interior (onde foi personagem central de uma trama trágica, que dá ares de saga ao livro) e que, sob a tutela do onipresente Carlos Imperial, tentou emplacar como jovem guardista de segunda escalão, passando por alguns constrangedores bolerões até, finalmente, encontrar-se com o samba, alcançando o primeiro sucesso com "Você passa e eu acho graça", parceria de Imperial com o lendário e, na época em seus momentos derradeiros na carreira, Ataulfo Alves.

             Mas Clara só se encontrou realmente a partir de 1971, quando abraçou o autêntico samba carioca guiada por seu mentor, o radialista Adelzon Alves ( a quem a história ainda há de fazer justiça como um dos maiores incentivadores da nossa cultura, em particular do samba) e fez o seu primeiro grande disco. Poucos anos depois, em 1975, estouraria com mais de cem mil de cópias do álbum "Claridade", marca inédita para uma mulher.

Por tudo isso, a imagem de Clara Nunes, que é nome de rua em Madureira, segue forte no imaginário popular. Como a sereia de canção, da qual a pisada na areia, fez o mar serenar.

domingo, 29 de julho de 2012

Vidas em pedaços= Homens por inteiro


Cotação : 5 estrelas



Embora conhecido como um dos papas do New Journalism e de ter publicado relativamente poucos romances, sendo o mais famoso deles "A Fogueira das Vaidades", Tom Wolfe é forte candidato ao posto de maior ficcionista americano vivo.

"Um Homem por Inteiro", publicado em 1999, é um livro grandioso nâo só no tamanho (mais de 600 páginas), mas na imensidão do painel da sociedade americana da virada do século XX, retratada pelo autor. O cenário do livro é a cidade de Atlanta, onde o empresário sessentão Charles Croker está às voltas com problemas financeiros e vê sua decadência física se aproximando velozmente.

O declínio de Croker, ex craque de futebol americano, se dá em uma cidade às voltas com suposto caso de estupro envolvendo um craque negro do time de futebol da cidade e uma jovem herdeira branca, filha de um empresário amigo de Charlie. O prefeito e o advogado do jovem jogador, ambos também negros, tentam conter a tensão racial latente. Paralelamente seguimos a trajetória de Conrad, um jovem operário de um frigorífico pertencente à Croker, e que após ser demitido, vê sua vida também entrar na descendente: é preso injustamente e após fugir da prisão (em um dos episódios mais emblemáticos do livro) sua vida vai se cruzar com a de seu ex patrão. Os dois veem seu mundo se desagregando até que ironicamente, quando mais parecem ser homens em pedaços, finalmente percebem que são homens por inteiro. Esse é o mote do título dessa obra seminal de Tom Wolfe.

domingo, 8 de julho de 2012

A noite nunca tem fim



Cotação : 5 estrelas


Na orelha da edição convencional de Pornopopéia (existe uma outra de bolso), o texto sem assinatura vaticina : “ Pela sua atualidade e também pela maneira como o autor domina o texto- de ritmo nervoso, ecoando o que se diz nas ruas, e não nos departamentos de literatura- Pornopopéia é uma experiência única. E seus efeitos não são passageiros.”

O que a princípio poderia ser mera retórica marqueteira da editora é de fato a pura expressão da verdade.

Para os mais apressados, as aventuras do cineasta frustrado Zeca, relegado a produzir vídeos institucionais de salsicha, seriam apenas pornografia da categoria mais baixa possível. A descrição minuciosa de orgias com jovens liberais e prostitutas, regadas a muitas drogas, talvez deixem essa impressão. Mas Reinaldo Moraes consegue mais do que isso. O devasso Zeca é tão bem construído, suas observações despudoradas a respeito da realidade que o cerca tão contundentes, que Pornopopéia não pode deixar de ser o que efetivamente é : grande literatura, um romance símbolo de sua era.

Um outro fator interessante é a condição de cúmplice fornecida ao leitor, pois Zeca, a exemplo de personagens criados por Machado de Assis e Jorge Amado, se dirige diretamente ao leitor em meio ao relato de suas loucuras. Somos agregados à noitada sem fim do narrador.
Além de tudo isso, Reinaldo Moraes utiliza um humor matador, tão politicamente incorreto, quanto irresistível. Em vários momentos, o livro inspira sinceras gargalhadas.

Nunca um autor tão marginal, ocupou lugar tão central em nossas letras.



domingo, 24 de junho de 2012

O verdadeiro superpop.




Cotação : 3 estrelas



Poucas pessoas são tão identificadas com o universo pop quanto Nelson Motta. Certa vez, Astrid Fotenelle, Vdj de primeira hora da MTV, disse que logo que as conversações sobre a instalação da emissora americana no Brasil foram iniciadas, o nome de Nelsinho foi um dos primeiros a ser considerados.

De alguns anos para cá, toda essa veia criativa do jornalista, produtor, compositor, roteirista e apresentador de TV, vem sendo usada a serviço da literatura, tanto a de não ficção, em que diga-se de passagem, tem sido muito bem sucedido, quanto a ficcional, onde longe de produzir obras primas (e esse nem é o seu objetivo) vem desempenhando um bom papel em títulos fiéis ao seu estilo jovem e descontraído.

“Força Estranha” é a primeira incursäo de Motta nas narrativas curtas. O espírito pop citado no íncio se faz presente, desde a capa bem bolada , com chamadas sensacionalistas dos contos ali contidos, permanecendo por todo o livro, misturando propositadamente memórias, ficção e fragmentos de relatos. Certos personagens são claramente alter egos do autor, outros, livremente inspirados em amigos (como por exemplo o jornalista Eduardo Bueno, retratado quase que fielmente no conto sobre a Copa da Argentina).

O saldo é positivo, com destaque para as duas histórias que fecham o pequeno volume : uma que estabelece um link entre personagens de diferentes contos e outro, supostamente explicativo da construção do livro, e que presta uma bela homenagem aos contadores de causos pelo Brasil afora.

Se não chega a fazer frente às suas outras incursões na ficção, “Força Estranha”  tem o mérito da leveza e da diversão tão caras a seu autor. Literatura de entrenimento, sem culpa. 

domingo, 17 de junho de 2012

Nelson dissecado em obra prima de Ruy Castro


Cotação : 5 Estrelas


É difícil resumir em palavras a minha profunda admiração por Ruy Castro. Muito mais fácil será falar do livro que inaugurou a minha relação de "leitor apaixonado" (título de seu mais recente livro) com a obra do autor.

"O Anjo Pornográfico", que eu comprei na véspera do natal de 1994, é a biografia definitiva sobre Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo e um dos grandes jornalistas de todos os tempos. A grandeza do livro está nas inúmeras passagens interessantes que através da história do escritor repassam um período significativo da vida brasileira. Na impossibilidade de resumir todas, fico com aquela que mais me emocionou.

Em 29 de dezembro de 1929, uma tragédia abalou a família Rodrigues. Roberto, um dos talentosos filhos de Mário Rodrigues, foi brutalmente assassinado por uma socialite enlouquecida que entrou de arma em punho na redação do jornal dos Rodrigues à procura do patriarca. Dias antes, o diário havia publicado uma notícia sobre sua separação, o que a deixou revoltada. Como Mário Rodrigues estava ausente, ela atirou em seu filho, hábil cartunista, que também atuava no jornal.

O fato arrasou a família, levando Mário Rodrigues à depressão e à morte, meses depois.
Em 1943, Nelson Rodrigues, que na época do assassinato do irmão era um adolescente de 17 anos, estreou a revolucionária "Vestido de Noiva", a peça que iria mudar radicalmente o teatro brasileiro de então. Nelson escrevia a peça à noite, após o expediente no jornal. Durante o dia, sua esposa datilografava o texto e imúmeras vezes ligava para a redação : "Nelson, deve ter alguma coisa errada. Eu não estou entendendo nada. É assim mesmo ?" Ele respondia : "Pode datilografar do jeito que está."

Nelson criou, pela primeira vez no nosso teatro, ações simultâneas em que o passado, o presente e a imaginação da personagem principal se alternavam no decorrer da peça.O texto chamou a atenção de um diretor refugiado da guerra, recém chegado ao país, Ziembinski, que ensaiou um grupo de teatro amador para uma apresentação única, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

No dia da estréia, Nelson estava com a família em um camarote. Extremamente nervoso, não tinha certeza se a platéia estava preparada para o que seria encenado.

Abrem-se as cortinas, começa o espetáculo. Os vários planos de ação da peça são apresentados.No fim do primeiro ato, aplausos protocolares.No segundo ato a ação se intensifica. Os aplausos do final se resumem a alguns poucos, puxados por amigos e pela família.Entra o terceiro ato, a platéia fica estupefada. Dessa vez nem sua mãe aplaudiu.Nelson a custo se mantêm no teatro até o fim da peça. Já via se desenhando o fracasso, a humilhação suprema de uma vaia monumental...

Finalmente o espetáculo termina. A cortina se fecha. Longos segundos de silêncio torturam ainda mais Nelson que, aquela altura, já quase chorava, quando lentamente irrompe um, dois , três aplausos, até desaguar em uma ovação consagradora como poucas vezes se viu no Municipal. No meio da confusão e dos "vivas e bravos" vigorosos, alguns começaram a gritar: "O autor, o autor !" Nelson, que ocupava com a família um discreto camarote, não era visto pela multidão que consagrava a sua criação. Acabou acidentalmente ignorado em seu momento mais glorioso.

Após a apresentação, o elenco foi comemorar o sucesso em um dos muitos restaurantes chiques que ficavam na Cinelândia. Nelson não foi. Tinha acabado de inventar o Teatro brasileiro moderno, mas não tinha dinheiro para a despesa. Preferiu ficar com a família e esperar a lotação para voltar para casa. Já era madrugada. Começava o dia 29 de dezembro de 1943, décimo quarto aniversário de morte de seu irmão Roberto.

Só por esse episódio "O Anjo Pornográfico" merece figurar entre as obras primas da literatura não ficcional brasileira.

sábado, 9 de junho de 2012

A volta ao mundo do samba em 80 textos.


Cotação : 4 estrelas


Tarik de Souza faz parte de um seleto grupo de profissionais que formataram o nosso jornalismo musical : João Máximo, Luiz Pimentel, Jamari França, Tom Leão, Carlos Albuquerque, Arthur Dapieve, entre outros.

Como um dos decanos dessa turma, ele mostra intimidade com o gênero na coletânea de textos que compõe “Tem Mais Samba”, publicação caprichada da Editora 34.

O passeio segue uma certa cronologia, ao iniciar com as bases lançadas ainda na chamada “época de ouro” da MPB, quando imperavam os sambistas do Estácio (Ismael Silva à frente) e alguns dos maiores criadores do estilo, como Sinhô e Noel Rosa. Tudo, devidamente gravado pelos pioneiros ídolos do disco, Francisco Alves (também “comprositor”) e Carmem Miranda.

O panorama segue com um avanço sobre o samba canção, que monopolizou o período pré bossa nova, com Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues e Jamelão, talvez o maior intérprete do gaúcho. O sambão de raiz não poderia faltar. Passam pela pena de Tárik, os Nelsons, Sargento e Cavaquinho, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, João Nogueira, Clara Nunes, Candeia, D. Ivone Lara, Martinho da Vila, etc.

Embora abarque quase todas as tendências, o grande destaque acaba sendo mesmo para a turma da bossa nova, que ao renovar o samba incluindo elementos jazzísticos, elevou a música brasileira a um novo patamar estético. O autor não disfarça a sua militância pela esfera do “banquinho e violão”. Quase todos os expoentes do movimento, incluindo seus precursores, batem ponto em “Tem Mais Samba”.

O livro é fundamental, embora algumas crenças de Tárik possam melindrar o leitor em suas preferências. No meu caso, achei injusto o desprezo a alguns artistas, como o subestimado Bebeto (tachado de mero “xerocador” de Jorge Ben Jor) e o incompreendido Benito de Paula (que boa parte da crítica trata pejorativamente de ícone do “Sambão Jóia”). De qualquer forma, a unanimidade nunca foi prova de valor e nem faz atravessar o samba.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Um fenômeno da comunicação.

Cotação : 4 estrelas.


Os 45 anos de rádio esportivo e a liderança de 25 anos à frente da titularidade da narração da Rádio Globo do Rio fizeram de José Carlos Araújo um dos nomes mais importantes da história do veículo.

Á primeira vista, impressiona saber que Garotinho (o apelido foi alvo de disputas com Osmar Santos e o ex-governador do Rio, Anthony Matheus, embora esteja mais do que provado que Aráujo é o Garotinho original) com toda a jovialidade que transborda de sua figura e recheia suas transmissões, já vai completar 70 anos de idade. Para os amantes do futebol suas transmissões são quase indissociáveís  das grandes emoções esportivas de uma era pré pay per view.

Quantas vezes, ainda garoto, vibrei ao som dos 1220 da Globo, com ele no comando e Apolinho nos comentários ? O livro de Rodrigo Taves resgata tudo isso e, surpreendentemente, sem fugir às questões mais delicadas da trajetória do locutor, como a briga com Waldir Amaral, em 1977, quando saiu para montar a equipe da Rádio Nacional e ser o principal narrador da emissora; suas relações comerciais na dupla atividade de jornalista e publicitário, fator de eternas discussões principalmente no seio da imprensa esportiva; as divergências com o atual modelo estratégico da Rádio Globo que privilegia a operação em rede em detrimento de uma coloração local ao rádio (fator inclusive do grande crescimento da Rádio Tupi entre o público ouvinte do futebol carioca) e as eventuais encrencas na sua paralela carreira de funcionário público, que, embora concursado, era liberado de dar expediente nas repartições, fato criticado por muitos.

Enfim, polêmicas à parte, é inegável a importância de José Carlos no cenário radiofônico brasileiro, o que dá à iniciativa de Rodrigo Taves, desde já, o status de obra fundamental para aqueles que se interessam pelos nossos fenômenos de comunicação. Garotinho é um deles.