Cotação : 5 Estrelas
É difícil resumir em palavras a minha
profunda admiração por Ruy Castro. Muito mais fácil será falar do livro que
inaugurou a minha relação de "leitor apaixonado" (título de seu mais
recente livro) com a obra do autor.
"O Anjo Pornográfico", que eu
comprei na véspera do natal de 1994, é a biografia definitiva sobre Nelson
Rodrigues, nosso maior dramaturgo e um dos grandes jornalistas de todos os
tempos. A grandeza do livro está nas inúmeras passagens interessantes que
através da história do escritor repassam um período significativo da vida
brasileira. Na impossibilidade de resumir todas, fico com aquela que mais me
emocionou.
Em 29 de dezembro de 1929, uma tragédia
abalou a família Rodrigues. Roberto, um dos talentosos filhos de Mário
Rodrigues, foi brutalmente assassinado por uma socialite enlouquecida que
entrou de arma em punho na redação do jornal dos Rodrigues à procura do
patriarca. Dias antes, o diário havia publicado uma notícia sobre sua
separação, o que a deixou revoltada. Como Mário Rodrigues estava ausente, ela
atirou em seu filho, hábil cartunista, que também atuava no jornal.
O fato arrasou a família, levando Mário
Rodrigues à depressão e à morte, meses depois.
Em 1943, Nelson Rodrigues, que na época do assassinato do irmão era um
adolescente de 17 anos, estreou a revolucionária "Vestido de Noiva",
a peça que iria mudar radicalmente o teatro brasileiro de então. Nelson
escrevia a peça à noite, após o expediente no jornal. Durante o dia, sua esposa
datilografava o texto e imúmeras vezes ligava para a redação : "Nelson,
deve ter alguma coisa errada. Eu não estou entendendo nada. É assim mesmo
?" Ele respondia : "Pode datilografar do jeito que está."
Nelson criou, pela primeira vez no nosso
teatro, ações simultâneas em que o passado, o presente e a imaginação da
personagem principal se alternavam no decorrer da peça.O texto chamou a atenção de um diretor refugiado da guerra, recém chegado ao
país, Ziembinski, que ensaiou um grupo de teatro amador para uma apresentação
única, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
No dia da estréia, Nelson estava com a família em um camarote. Extremamente
nervoso, não tinha certeza se a platéia estava preparada para o que seria
encenado.
Abrem-se as cortinas, começa o espetáculo. Os vários planos de ação da peça são
apresentados.No fim do primeiro ato, aplausos
protocolares.No segundo ato a ação se intensifica. Os aplausos do final se resumem a alguns
poucos, puxados por amigos e pela família.Entra o terceiro ato, a platéia fica
estupefada. Dessa vez nem sua mãe aplaudiu.Nelson a custo se mantêm no teatro até o fim da peça. Já via se desenhando o
fracasso, a humilhação suprema de uma vaia monumental...
Finalmente o espetáculo termina. A cortina se
fecha. Longos segundos de silêncio torturam ainda mais Nelson que, aquela altura,
já quase chorava, quando lentamente irrompe um, dois , três aplausos, até
desaguar em uma ovação consagradora como poucas vezes se viu no Municipal. No
meio da confusão e dos "vivas e bravos" vigorosos, alguns começaram a
gritar: "O autor, o autor !" Nelson, que ocupava com a família um
discreto camarote, não era visto pela multidão que consagrava a sua criação. Acabou
acidentalmente ignorado em seu momento mais glorioso.
Após a apresentação, o elenco foi comemorar o
sucesso em um dos muitos restaurantes chiques que ficavam na Cinelândia. Nelson
não foi. Tinha acabado de inventar o Teatro brasileiro moderno, mas não tinha
dinheiro para a despesa. Preferiu ficar com a família e esperar a lotação para
voltar para casa. Já era madrugada. Começava o dia 29 de dezembro de 1943,
décimo quarto aniversário de morte de seu irmão Roberto.
Só por esse episódio "O Anjo
Pornográfico" merece figurar entre as obras primas da literatura não
ficcional brasileira.