quarta-feira, 12 de março de 2014

A Lucidez dos alienados e a loucura dos sãos.



Cotação : 4 estrelas

A cidade de Barbacena pode ser lembrada como a sede da Escola Peparatória de Cadetes do Ar (Epcar), colégio onde a Aeronáutica prepara seus futuros oficiais. Também aparece nas enciclopédias como cidade natal de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, um dos políticos mais importantes da história do Brasil, com atuação destacada na Revolução de 30. Mas, a grande fama do município mineiro vem mesmo de sua acidentada relação com os tempos mais sombrios da psiquiatria. Era lá que ficava a Colônia, um imenso conjunto de instituições dedicadas à saúde mental, mas que na prática eram câmaras dos horrores, que reproduziam ferozmente os procedimentos medievais que marcaram esse ramo da medicina até bem recentemente. Trazer à tona os detalhes dessa triste história, foi o que motivou a jornalista Daniela Arbex a escrever “O Holocausto Brasileiro” (Geração Editorial, 2013).

Projeto nascido de uma série de reportagens publicadas na “Tribuna de Minas”, jornal de Juiz de fora, o livro estima o óbito diário de 16 pacientes em pelo menos 11 anos de funcionamento da instituição (1969-1980), o que justificaria o título comparando a tragédia mineira ao genocídio de judeus durante a Segunda Guerra.
Marcada por anos de procedimentos desumanizados, o tratamento psiquiátrico praticado na colônia (a bem da verdade não só lá) reduzia qualquer elemento de identificação da condição humana em seus internos. Os pacientes viviam vagando pelos pátios, em sua grande maioria nus, prisioneiros de seus delírios e obsessões escatológicas. Não era incomum que muitos matassem a sede com a água de esgoto que corria livremente pelos pátios. Outros, frequentemente eram flagrados ingerindo excrementos (os próprios e dos outros), inclusive mulheres grávidas, que, em uma demonstração algo distorcida do instinto materno, esfregavam fezes em suas barrigas  na intenção de evitar a aproximação dos funcionários, pois julgavam que eles estariam ali para roubar os seus filhos.
A longa exposição dos cruéis relatos que aniquilaram histórias pessoais, não só de enfermos como também de pessoas supostamente saudáveis e que eram internadas em Barbacena por interesses vis (há casos de mulheres violentadas fazendeiros, idosos vítimas de golpes, etc), por vezes fornecem uma aura sensacionalista à empreitada, aliado a isso, soa estranho que , embora diversos funcionários e médicos condenassem aquele cenário, o “sistema”, em sua lógica implacável e impessoal, seguia triturando vidas em suas engrenagens. É claro que à distância e sem entrar mais a fundo no contexto da situação, parece fácil julgar, mas teria sido interessante que o viés investigativo da obra explorasse um pouco mais as causas e responsáveis por tantas atrocidades. Afinal, o “sistema”, no fundo é sustentado por pessoas e atitudes individuais.
Apesar dessa ressalva, o saldo é indiscutivelmente positivo. “O Holocausto Brasileiro” colocou no mapa a realidade dura da psiquiatria pré movimento antimanicomial e embora estejamos ainda longe de garantir um atendimento universalmente humanizado aos pacientes de distúrbios mentais (sobretudo aos mais graves), a crescente conscientização dos profissionais de saúde e da sociedade em geral, tornam pouco provável a recorrência dos fatos lamentáveis narrados por Daniela Arbex.   Parafraseando o célebre slogan de uma famosa série de TV, fatos esses que nos levam a crer que muitas vezes a insanidade está lá fora.