Cotação : 3 Estrelas
A bela edição da Planeta, parte
integrante da coleção Biblioteca Invisível (2004), traz a público mais um título
de um escritor seminal, tal como Van Gogh, ignorado e desprezado em vida, incensado
e estudado nessas nove décadas desde o seu passamento.
Impossível não se emocionar com o
drama crônico da vida do carioca Afonso Henriques de Lima Barreto. Nascido
pobre, filho de um tipografo e de uma dona de casa, Lima Barreto perdeu a mãe
quando tinha menos de 2 anos de idade, e , aos 20, teve que abandonar a Escola
Politécnica, onde cursava Engenharia, para ser arrimo de família, pois o pai
enlouquecera quase de súbito. Não seria a primeira vez que a doença mental
cruzaria o seu caminho.
Enfrentando o forte preconceito
social e racial da época, o mulato Lima iniciou o seu longo caso de amor com o
jornalismo e literatura, fazendo colaborações regulares com pequenas publicações e já abrindo caminho
para a veia modernista que banharia a sua produção na ficção.
Infelizmente, os percalços de uma
vida sofrida e em constantes apuros financeiros, além da pouca repercussão de
seu trabalho junto à intelectualidade de então, empurraram Lima para um lento
processo de auto destruição, embalado pelo vício cruel do alcoolismo. “Cemitério
dos Vivos” é o volume que reúne as memórias do escritor de um período
compreendido entre o final de 1919 e o começo de 1920, em que ele, já bastante
deteriorado pela doença, esteve internado no antigo Hospício Nacional, atual
Instituto Pinel, após uma crise que o faz vagar em delírio pelas ruas do
Engenho de Dentro, bairro em que morava, justamente na noite de natal. Mais
triste impossível.
Poucos relatos teriam a contundência
da fria observação de Lima sobre a perda gradual de humanidade sofrida pelos
doentes mentais naquelas primeiras décadas do século passado. Ironicamente, a
vida lhe fazia caminhar em espiral pela tragédia. Primeiro, sendo espectador
privilegiado da loucura do pai, mais tarde, observando e registrando
lucidamente a sua agonia, na mesma direção apontada pela sina hereditária.
Embora imerso em seu drama, Lima
Barreto não fecha os olhos aos companheiros de infortúnio, descrevendo em
detalhes as manias, os devaneios, as inquietações dos genérica e
pejorativamente tratados como “malucos”. O livro é complementado pelas notas
esparsas reunidas originalmente pelo autor com o intuito de romancear aquela
experiência, tentativa que ficou inacabada.
Na verdade, a força avassaladora
do relato, e que poderia tranquilamente ser um manifesto contra a luta
antimanicomial , prescindia desse exercício, em mais um triste de exemplo de
que a realidade, na maioria das vezes, é mais assustadora que a ficção.