sábado, 24 de novembro de 2012

Manifesto Antimanicomial


Cotação : 3 Estrelas


A bela edição da Planeta, parte integrante da coleção Biblioteca Invisível (2004), traz a público mais um título de um escritor seminal, tal como Van Gogh, ignorado e desprezado em vida, incensado e estudado nessas nove décadas desde o seu passamento.

Impossível não se emocionar com o drama crônico da vida do carioca Afonso Henriques de Lima Barreto. Nascido pobre, filho de um tipografo e de uma dona de casa, Lima Barreto perdeu a mãe quando tinha menos de 2 anos de idade, e , aos 20, teve que abandonar a Escola Politécnica, onde cursava Engenharia, para ser arrimo de família, pois o pai enlouquecera quase de súbito. Não seria a primeira vez que a doença mental cruzaria o seu caminho.

Enfrentando o forte preconceito social e racial da época, o mulato Lima iniciou o seu longo caso de amor com o jornalismo e literatura, fazendo colaborações regulares  com pequenas publicações e já abrindo caminho para a veia modernista que banharia a sua produção na ficção.

Infelizmente, os percalços de uma vida sofrida e em constantes apuros financeiros, além da pouca repercussão de seu trabalho junto à intelectualidade de então, empurraram Lima para um lento processo de auto destruição, embalado pelo vício cruel do alcoolismo. “Cemitério dos Vivos” é o volume que reúne as memórias do escritor de um período compreendido entre o final de 1919 e o começo de 1920, em que ele, já bastante deteriorado pela doença, esteve internado no antigo Hospício Nacional, atual Instituto Pinel, após uma crise que o faz vagar em delírio pelas ruas do Engenho de Dentro, bairro em que morava, justamente na noite de natal. Mais triste impossível.

Poucos relatos teriam a contundência da fria observação de Lima sobre a perda gradual de humanidade sofrida pelos doentes mentais naquelas primeiras décadas do século passado. Ironicamente, a vida lhe fazia caminhar em espiral pela tragédia. Primeiro, sendo espectador privilegiado da loucura do pai, mais tarde, observando e registrando lucidamente a sua agonia, na mesma direção apontada pela sina hereditária.

Embora imerso em seu drama, Lima Barreto não fecha os olhos aos companheiros de infortúnio, descrevendo em detalhes as manias, os devaneios, as inquietações dos genérica e pejorativamente tratados como “malucos”. O livro é complementado pelas notas esparsas reunidas originalmente pelo autor com o intuito de romancear aquela experiência, tentativa que ficou inacabada.

Na verdade, a força avassaladora do relato, e que poderia tranquilamente ser um manifesto contra a luta antimanicomial , prescindia desse exercício, em mais um triste de exemplo de que a realidade, na maioria das vezes, é mais assustadora que a ficção.