sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Kid Mumu além dos memes.



Cotação : 5 estrelas

Começo essa resenha em um domingo, 19/10/2014, 19:00. Para muitos isso não significa muita coisa, mas, para aqueles que foram crianças entre o fim dos anos 70 e por toda a década de 80, o dia e o horário, associadas à música tema, são referencias inequívocas : Era o dia e a hora do programa dos Trapalhões, na Globo.
 O grupo formado em 66 na Excelsior, mas, após algumas encarnações, consolidado em 74 na TV Tupi, era a tradução brasileira do consagrado humor circense pastelão, cujo o paralelo internacional mais famoso talvez sejam os Três Patetas. Cristalizado como quarteto, o grupo tinha em cada um de seus comediantes papeis bem definidos e que funcionavam à perfeição dentro do time de comédia a que se dedicavam. Para muitos, apesar de momentos solos e coletivos brilhantes, o trapalhão mais engraçado era mesmo Mussum.
“Mussum forevis : Samba, Mé e Trapalhões” (Leya, 2014) é a esperada biografia do humorista que, apesar dos 20 anos de sua morte, segue mais vivo do que nunca sobretudo pela notável apropriação de seus bordões e imagem, eternizados em vídeos compartilhados e nas famosas “memes” compartilhadas de forma viral nas redes sociais. Boa parte dos criadores que mantêm esse culto ao velho trapalhão, não teve idade suficiente para acompanhar in loco a carreira de Antônio Carlos e nem faz ideia de que ele na verdade era muito mais que um notável comediante. É em grande parte para esse público que o jornalista Juliano Barreto escreveu o livro.
O autor desvenda as origens humildes de Mussum, que, embora mais tarde associado de forma imediata à Mangueira, nasceu no Morro da Cachoeirinha, no Engenho Novo, também na Zona Norte do Rio. Filho de uma lavadeira analfabeta, nunca conheceu o pai e viveu as dificuldades inerentes à sua condição nos difíceis e preconceituosos anos 40 e 50. Apesar disso, seguiu regularmente nos estudos, dentro das possibilidades dos meninos de sua classe social, conseguindo o diploma de um curso técnico de mecânica, passaporte para um engajamento na carreira de militar, quando se alistou na Aeronáutica,
Ao mesmo tempo em que era um militar disciplinado, Mussum, nas horas de folga, começou a intensificar as suas incursões no mundo do samba, universo no qual gravitava desde de adolescente. Observando e frequentando inúmeras rodas de samba com amigos, Mussum se transformou num exímio sambista, tendo inclusive, utilizando os seus conhecimentos de mecânica, praticamente inventado um instrumento : o reco- reco.
O convívio mais intenso com os bambas do samba carioca, rendeu um dia um convite para integrar um grande grupo de passistas e ritmistas que faria audição para o mítico Carlos Machado que, apesar de não estar mais em seus áureos dias, seguia montando seus espetáculos musicais. O grupo foi aprovado e Mussum entrou para o mundo do showbizz,
A partir daí , trabalhando em grupo nas shows do veterano produtor, embora ainda na vida dupla de militar, Antônio Carlos começou não só a melhora de vida, como também a ganhar experiência de palco, desenvolvendo brincadeiras e coreografias com os colegas, que garantiam o espaço do grupo e chamava a atenção de outros artistas que passariam também a contar com os músicos em suas apresentações.
Por essa época, ele estrearia na televisão e, de quebra, ganharia o apelido que o tornou famoso. Em novembro de 1965, a Globo ainda era um pequena emissora carioca que montava sua grade de programação para fazer gente às grandes com a Tupi, a Excelsior e a TV Rio. Maurício Shermann, então já um experiente diretor, criou um programa humorístico chamado de “Bairro Feliz”. Grande Otelo era uma das estrelas da atração e teria um bloco inteiro só para si, no qual fazia um compositor que tentava em vão emplacar seus fracos sambas na escola do coração. Para compor o quadro, era necessário que houvesse a reprodução mínima da estrutura de uma escola de samba. Otelo era muito amigo de Carlos Machado e indicou o grupo, já então denominado Originais do Samba, que tocava em seus espetáculos. 
O conjunto era coadjuvante do quadro que, além de Otelo tinha também Milton Gonçalves como o diretor da tal escola de samba. Um dia, um dos atores escalados para o esquete faltou. Não havia tempo de arrumar outro e o jeito foi apelar para um dos rapazes do conjunto. Como Antônio Carlos era o mais falante, foi o escolhido. Resistiu até a última hora, mas Shermann apelou e ele, a contragosto, acabou aceitando. O programa era ao vivo, como quase tudo que se fazia na TV brasileira da época e , Otelo, invariavelmente não ensaiava, chegando em cima da hora do programa e frequentemente já calibrado. Foi assim naquela vez. Por não ter o texto decorado, o ator resolveu entrar em cena com um livro, com as suas falas cuidadosamente colocadas dentro.
O programa começou. Na hora do quadro, Otelo estranhou ter que contracenar com alguém do grupo, não sabia que o ator escalado havia faltado, mas a coisa foi se desenrolando. No meio da cena, Milton Gonçalves entra com o resto dos Originais em uma frenética batucada. Otelo se assusta e deixa o livro cair com as falas se espalhando pelo palco. Enquanto tenta catar as falas, a plateia e o resto do elenco vem abaixo de tantas risadas. Já irritado, Otelo encara Antônio Carlos e dispara : “Tá rindo de quê o...Muçum !!!”. O programa praticamente acabou. Ninguém se aguentou de tanto gargalhar (Muçum, grafado com ç mesmo, é um peixe escuro). Nascia um ícone.
Após o cancelamento de “Bairro Feliz”, o grupo seguiu de forma ainda mais intensa a carreira, tocando nos célebres programas e festivais musicais da TV Record. Os Originais do Samba foram rapidamente alçados ao posto de um dos grandes nomes do gênero no país. Assinam com a RCA e desandam a fazer shows. Mesmo com a vida de músico de vento em polpa, Mussum ainda teria pelo menos mais uma participação cômica de impacto na TV. Chico Anysio, ao remontar a clássica Escolinha do Professor Raimundo na Tupi, em 1968, buscava o aproveitamento de novos alunos. Já conhecia Mussum da experiência do “Bairro Feliz” e ao assistí-lo em um espetáculo do já decadente teatro de revista, não teve dúvidas, o chamou para trabalhar na versão televisiva do velho quadro do rádio. Foi lá, por orientação de Chico, que Mussum adotou a particular pronúncia que seria a sua marca registrada nas telas. O personagem estava pronto.
O encontro definitivo que colocaria o personagem na história, se daria pouco depois, ainda no começo dos anos 70.
Em 1960, o jovem advogado Renato Aragão fez um teste para trabalhar na então nascente TV Ceará. Sendo um fanático por Oscarito, Renato sonhava em ser como seu ídolo, um mito do cinema, mas a TV, ainda uma novidade para a maioria dos brasileiros, poderia ser um atalho interessante. Sem qualquer contato com o mundo artístico antes, ele foi aprovado e passou a bater ponto como ator e redator de humor na estação cearense.
Em 1964, após grande sucesso em sua terra natal, Aragão desembarca no Rio para trabalhar na mítica TV Tupi, no programa “A,E,I,O, Urca.” Por essa época, conhece Dedé Santana, começam a trabalhar em dupla em vários humorísticos, com Dedé se consolidando no papel de “escada” e Renato interpretando o personagem Didi.
A primeira grande chance, no entanto, viria em 66, na TV Excelsior. Os diretores da emissora encomendaram a Wilton Franco uma nova atração a fim de capitalizar a imensa fama de Wanderley Cardoso, no auge como um dos grandes galãs da Jovem Guarda. Inspirado nos programas americanos do gênero, que misturavam humor e musical, Franco cria uma estrutura que permitisse o suporte para o brilho de Wanderley. O experiente showman Ivon Cury  entra para “segurar” os textos, o astro do Telecatch Ted Boy Marino para turbinar as cenas de ação e Renato Aragão para a parte cômica. O programa foi batizado como “Os Adoráveis Trapalhões”. Estava formada a primeira encarnação do grupo.
Apesar do sucesso, as dificuldades da Excelsior levariam ao fim do programa. Renato retoma a parceria com Dedé, ambos passando por nova época de vacas magras, como no início de suas carreiras no canal 06 do Rio. Em mais um episódio que evidencia a importância da figura de  Manoel de Nóbrega para tantos artistas, a dupla consegue entrar para o elenco da “Praça da Alegria”, por volta de 1970 e, introduzindo no velho humorístico a forma diferente do humor físico, não baseado em contar piadas e sim em encená-las, voltam a sentir o gosto do sucesso.
Graças ao desempenho na Praça, a direção da Record cria um programa próprio para os dois , Os Insociáveis, nome instituído por Paulo Machado de Carvalho e detestado por Renato, que queria desde então retomar o nome Trapalhões, lançado na Excelsior e que também já vinha sendo usado na carreira cinematográfica do cearense. Quando o programa ganhou mais destaque e maior duração, surge a necessidade de dar um reforço na equipe. Segundo Juliano Barreto, a ideia de incorporar um ator negro à equipe, partiu do próprio Renato, inspirado pelo sucesso de Bill Cosby na TV americana. A primeira opção seria Tião Macalé, que acabou sendo descartado por ter dificuldades com textos e pouca disciplina (o que não impediu que o cômico fosse imortalizado, assim como Roberto Guilherme, como uma espécie de trapalhão honorário). A segunda opção foi Mussum, pesando a seu favor além do talento natural para fazer rir, já testado na Escolinha e no “Bairro Feliz” e a sua excelente relação com Dedé que já o conhecia do Teatro de Revista. Inclusive foi Dedé quem fez pessoalmente a proposta a Mussum para entrar na trupe. Ao longo dos anos, eles seriam os maiores amigos dentro do grupo (ao contrário do imaginário popular eu provavelmente dava essa condição à dupla Didi- Dedé) , tendo sido inclusive vizinhos no mesmo condomínio em Jacarépagua.
Em 74, o grupo vai para Tupi e, com a entrada de Mauro Gonçalves e seu personagem Zacarias, e adoção definitiva do nome Os Trapalhões, tanto para o grupo, como para o programa, a formação definitiva foi cristalizada.
O livro explora a partir daí a fase de sucesso vertiginoso que se aceleraria com a ida para a Globo, em 77, e a cada vez maior devoção de Renato ao cinema. Juliano faz um trabalho amplo o suficiente para mostrar a dinâmica de funcionamento do grupo, a  vida profissional dupla de Mussum, que , a despeito de se tornar um ídolo nacional como trapalhão,  só deixaria os Originais do Samba no começo dos anos 80, e as tensões entre Renato Aragão e o restante do grupo, curiosamente acirradas durante as difíceis filmagens de “Os Saltimbancos Trapalhões”, praticamente a gota d´água para a separação, que encerraria a fase de ouro do quarteto (77-82).
Por sinal, “Mussum Forevis” esclarece muitos aspectos desse controverso episódio em que Mussum, Dedé e Zacarias, fundam a própria produtora e fazem o filme “Atrapalhando a Swat” sem Renato (detentor do nome Trapalhões) que por sua vez segue sozinho o programa na Globo (os outros três permanecem na emissora, mas no humorístico “A Festa é Nossa”) e lançou “O Trapalhão na Arca de Noé”, sem os companheiros.
Uma curiosidade é que a volta acabou sendo arquitetada por Beto Carreiro, já então um importante parceiro comercial do grupo (era ele quem arrumava os merchandisings que enxurravam o programa e ajudavam a financiar os filmes), que marcou um jantar em Copacabana com cada um deles, sem o conhecimento dos demais. Quando todos chegaram, rolaram lágrimas e abraços e o grupo foi retomado.
A saga de Mussum segue sendo narrada com detalhes saborosos, sobretudo com aspectos até aqui pouco conhecidos da vida particular do artista, cuja a morte, em 94, acabou sendo o estopim para o fim dos Trapalhões, já abalados pelo falecimento de Zacarias, em 1990.
Antônio Carlos Bernardo Gomes segue como ícone do humor, sobretudo nesses tempos de comunicação digital. Os velhos vídeos do programa no youtube, eternizando os bordões e trejeitos do velho trapalhão, são o mote para a criação infinita de memês que inundam as redes sociais, ampliando o número de fãs do “Muça” para muito além daqueles que tiveram o privilégio de acompanhar a sua carreira in loco. A obra de Juliano Barreto faz justiça a esse fenômeno. Duvidis ?


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sobrevivendo às pedras que rolam




Cotação : 2 estrelas

O axioma é famoso : Em uma hipótese de fim do mundo em função de uma hecatombe nuclear restariam as baratas e...Keith Richards.
“Vida” (Editora Globo, 2010) é o best seller que, em forma de depoimento, relata, com tintas cinematográficas, a trajetória do guitarrista e , considerando-se Mick Jagger como o cérebro,  a autêntica alma dos Rolling Stones, ainda, a maior banda do mundo em atividade.
À primeira vista, uma autobiografia de Richards esbarra em uma questão crucial : sendo notório o seu passado junk ao longo de praticamente três décadas de abusos das mais variadas substâncias, seria temerário confiar nas abaladas memórias do compositor inglês. Não por acaso, em vários momentos o autor recorre à transcrição integral de trechos de outros livros ou entrevistas realizadas com terceiros especialmente para o livro. A tática é acertada.
Keith, sintomaticamente, abre os trabalhos narrando um episódio ocorrido durante a turnê americana de 1975, e que ilustra à perfeição o seu estado de espírito na maior parte daqueles anos : A passagem por (mais) uma batida policial quando viajava juntamente com Ron Wood em um carro recheado dos seus famosos “remedinhos”. O caso acrescentaria um registro à já longa ficha do músico, uma das figuras mais visadas do show business de então.
Em pouco mais de 600 páginas, o Rolling Stone faz um inventário interessante, que remonta ao período em que a banda era apenas um ajuntamento de jovens ingleses brancos almejando fazer o som dos negros americanos. Richards fornece o seu ponto de vista para marcos históricos do quinteto, como a lenta escalada nas paradas, sobretudo as dos Estados Unidos (ao contrário dos Beatles, os Stones exploraram a América quando ainda não eram grandes nomes por lá, sendo inclusive figurinhas fáceis nas chamadas “caravanas” de atrações coletivas); o despertar do talento para a composição em dupla com Jagger, pressionados por Andrew Loog Oldham em uma tentativa de reproduzir o fenômeno Lennon-McCartney; o deslocamento de poder na banda que culminaria com o isolamento e a demissão de Brian Jones e, talvez o mais importante, os bastidores da criação de discos seminais como os da fase Mick Taylor (1969-1974).
Como o previsto, embora transpareça honestidade na maior parte dos relatos, Keith faz pouca força para desfazer boatos célebres que até hoje estão associados aos Stones, destaque aqui para a inacreditável história de sua total troca de sangue como tratamento extremo para se livrar da heroína, vício vencido em 1978, após a detenção em Toronto que quase lhe custou prisão perpétua e o consequente fim da banda. Embora  negue esse tratamento de choque, o leitor sai pouco convicto se a história é inteiramente falsa. Faz parte da mística.
Por sinal, esse “resgate” de Keith Richards marcaria uma nova fase para os Stones, onde o guitarrista se manteria sóbrio o suficiente para voltar a interferir ativamente nos destinos do grupo, o que provocaria a cisão com Mick Jagger que , fiel a seu estilo de se manter “antenado” a todo custo, tendia a abraçar qualquer moda musical que aparecesse, notadamente as que pululavam nas elegantes boates do jet set internacional, ambiente que o vocalista passaria a frequentar com desenvoltura. Os discos a partir de Some Girls (1978) até Dirty Work (1986) estariam recheados desse tipo de “atualização” do som da banda. Keith era radicalmente contra.
As diferenças se acentuaram ainda mais quando, siderado pelo sucesso de Michael Jackson, Jagger resolveu “pegar carona’ em uma negociação de contrato com a CBS para viabilizar sua sonhada carreira solo. Os ânimos se exaltaram quando, ao fim de Dirty Work, Mick se negou a excursionar com os Stones partindo para uma tour de divulgação de seu próprio álbum. O fim da banda ficou novamente por um fio.
Embora tudo esteja mais ou menos no lugar desde 89, quando apararam as arestas e voltaram ao velho esquema, dessa vez turbinadas por turnês gigantescas, que inclusive os trouxeram pela primeira vez ao Brasil, em janeiro de 1995, fica claro que os Stones hoje são muito mais uma empresa que explora um imenso portfólio musical do que exatamente um grupo. Até mesmo na questão de forjar uma imagem, pois mesmo Richards embora já há mais de 30 anos restritos aos cigarros (convencionais ou não) e aos drinques, ainda pousa de junk incorrigível, como já foi um dia.
Em resumo, “Vida”  é um testemunho de alguém que esteve no olho do furacão e voltou para contar a história. Chega a ser curioso que durante boa parte da década de 70, as publicações musicais divulgassem anualmente uma espécie de bolsa de apostas sobre os astros que provavelmente não emplacariam vivos o ano seguinte. Keith Richards frequentemente encabeçava a lista.  Como se sabe, as pedras seguem rolando e não há sinais de limo.