Cotação : 2 estrelas
O axioma é famoso : Em uma hipótese de
fim do mundo em função de uma hecatombe nuclear restariam as baratas e...Keith
Richards.
“Vida” (Editora Globo, 2010) é o best
seller que, em forma de depoimento, relata, com tintas cinematográficas, a
trajetória do guitarrista e , considerando-se Mick Jagger como o cérebro, a autêntica alma dos Rolling Stones, ainda, a
maior banda do mundo em atividade.
À primeira vista, uma autobiografia de
Richards esbarra em uma questão crucial : sendo notório o seu passado junk ao
longo de praticamente três décadas de abusos das mais variadas substâncias,
seria temerário confiar nas abaladas memórias do compositor inglês. Não por
acaso, em vários momentos o autor recorre à transcrição integral de trechos de
outros livros ou entrevistas realizadas com terceiros especialmente para o
livro. A tática é acertada.
Keith, sintomaticamente, abre os
trabalhos narrando um episódio ocorrido durante a turnê americana de 1975, e
que ilustra à perfeição o seu estado de espírito na maior parte daqueles anos :
A passagem por (mais) uma batida policial quando viajava juntamente com Ron
Wood em um carro recheado dos seus famosos “remedinhos”. O caso acrescentaria um
registro à já longa ficha do músico, uma das figuras mais visadas do show business
de então.
Em pouco mais de 600 páginas, o Rolling
Stone faz um inventário interessante, que remonta ao período em que a banda era
apenas um ajuntamento de jovens ingleses brancos almejando fazer o som dos
negros americanos. Richards fornece o seu ponto de vista para marcos históricos
do quinteto, como a lenta escalada nas paradas, sobretudo as dos Estados Unidos
(ao contrário dos Beatles, os Stones exploraram a América quando ainda não eram
grandes nomes por lá, sendo inclusive figurinhas fáceis nas chamadas
“caravanas” de atrações coletivas); o despertar do talento para a composição em
dupla com Jagger, pressionados por Andrew Loog Oldham em uma tentativa de
reproduzir o fenômeno Lennon-McCartney; o deslocamento de poder na banda que
culminaria com o isolamento e a demissão de Brian Jones e, talvez o mais
importante, os bastidores da criação de discos seminais como os da fase Mick
Taylor (1969-1974).
Como o previsto, embora transpareça
honestidade na maior parte dos relatos, Keith faz pouca força para desfazer
boatos célebres que até hoje estão associados aos Stones, destaque aqui para a
inacreditável história de sua total troca de sangue como tratamento extremo
para se livrar da heroína, vício vencido em 1978, após a detenção em Toronto
que quase lhe custou prisão perpétua e o consequente fim da banda. Embora negue esse tratamento de choque, o leitor sai
pouco convicto se a história é inteiramente falsa. Faz parte da mística.
Por sinal, esse “resgate” de Keith
Richards marcaria uma nova fase para os Stones, onde o guitarrista se manteria
sóbrio o suficiente para voltar a interferir ativamente nos destinos do grupo,
o que provocaria a cisão com Mick Jagger que , fiel a seu estilo de se manter
“antenado” a todo custo, tendia a abraçar qualquer moda musical que aparecesse,
notadamente as que pululavam nas elegantes boates do jet set internacional,
ambiente que o vocalista passaria a frequentar com desenvoltura. Os discos a
partir de Some Girls (1978) até Dirty Work (1986) estariam recheados desse tipo
de “atualização” do som da banda. Keith era radicalmente contra.
As diferenças se acentuaram ainda mais
quando, siderado pelo sucesso de Michael Jackson, Jagger resolveu “pegar
carona’ em uma negociação de contrato com a CBS para viabilizar sua sonhada
carreira solo. Os ânimos se exaltaram quando, ao fim de Dirty Work, Mick se
negou a excursionar com os Stones partindo para uma tour de divulgação de seu
próprio álbum. O fim da banda ficou novamente por um fio.
Embora tudo esteja mais ou menos no
lugar desde 89, quando apararam as arestas e voltaram ao velho esquema, dessa
vez turbinadas por turnês gigantescas, que inclusive os trouxeram pela primeira
vez ao Brasil, em janeiro de 1995, fica claro que os Stones hoje são muito mais
uma empresa que explora um imenso portfólio musical do que exatamente um grupo.
Até mesmo na questão de forjar uma imagem, pois mesmo Richards embora já há
mais de 30 anos restritos aos cigarros (convencionais ou não) e aos drinques,
ainda pousa de junk incorrigível, como já foi um dia.
Em resumo, “Vida” é um testemunho de alguém que esteve no olho
do furacão e voltou para contar a história. Chega a ser curioso que durante boa
parte da década de 70, as publicações musicais divulgassem anualmente uma
espécie de bolsa de apostas sobre os astros que provavelmente não emplacariam
vivos o ano seguinte. Keith Richards frequentemente encabeçava a lista. Como se sabe, as pedras seguem rolando e não
há sinais de limo.
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