quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sobrevivendo às pedras que rolam




Cotação : 2 estrelas

O axioma é famoso : Em uma hipótese de fim do mundo em função de uma hecatombe nuclear restariam as baratas e...Keith Richards.
“Vida” (Editora Globo, 2010) é o best seller que, em forma de depoimento, relata, com tintas cinematográficas, a trajetória do guitarrista e , considerando-se Mick Jagger como o cérebro,  a autêntica alma dos Rolling Stones, ainda, a maior banda do mundo em atividade.
À primeira vista, uma autobiografia de Richards esbarra em uma questão crucial : sendo notório o seu passado junk ao longo de praticamente três décadas de abusos das mais variadas substâncias, seria temerário confiar nas abaladas memórias do compositor inglês. Não por acaso, em vários momentos o autor recorre à transcrição integral de trechos de outros livros ou entrevistas realizadas com terceiros especialmente para o livro. A tática é acertada.
Keith, sintomaticamente, abre os trabalhos narrando um episódio ocorrido durante a turnê americana de 1975, e que ilustra à perfeição o seu estado de espírito na maior parte daqueles anos : A passagem por (mais) uma batida policial quando viajava juntamente com Ron Wood em um carro recheado dos seus famosos “remedinhos”. O caso acrescentaria um registro à já longa ficha do músico, uma das figuras mais visadas do show business de então.
Em pouco mais de 600 páginas, o Rolling Stone faz um inventário interessante, que remonta ao período em que a banda era apenas um ajuntamento de jovens ingleses brancos almejando fazer o som dos negros americanos. Richards fornece o seu ponto de vista para marcos históricos do quinteto, como a lenta escalada nas paradas, sobretudo as dos Estados Unidos (ao contrário dos Beatles, os Stones exploraram a América quando ainda não eram grandes nomes por lá, sendo inclusive figurinhas fáceis nas chamadas “caravanas” de atrações coletivas); o despertar do talento para a composição em dupla com Jagger, pressionados por Andrew Loog Oldham em uma tentativa de reproduzir o fenômeno Lennon-McCartney; o deslocamento de poder na banda que culminaria com o isolamento e a demissão de Brian Jones e, talvez o mais importante, os bastidores da criação de discos seminais como os da fase Mick Taylor (1969-1974).
Como o previsto, embora transpareça honestidade na maior parte dos relatos, Keith faz pouca força para desfazer boatos célebres que até hoje estão associados aos Stones, destaque aqui para a inacreditável história de sua total troca de sangue como tratamento extremo para se livrar da heroína, vício vencido em 1978, após a detenção em Toronto que quase lhe custou prisão perpétua e o consequente fim da banda. Embora  negue esse tratamento de choque, o leitor sai pouco convicto se a história é inteiramente falsa. Faz parte da mística.
Por sinal, esse “resgate” de Keith Richards marcaria uma nova fase para os Stones, onde o guitarrista se manteria sóbrio o suficiente para voltar a interferir ativamente nos destinos do grupo, o que provocaria a cisão com Mick Jagger que , fiel a seu estilo de se manter “antenado” a todo custo, tendia a abraçar qualquer moda musical que aparecesse, notadamente as que pululavam nas elegantes boates do jet set internacional, ambiente que o vocalista passaria a frequentar com desenvoltura. Os discos a partir de Some Girls (1978) até Dirty Work (1986) estariam recheados desse tipo de “atualização” do som da banda. Keith era radicalmente contra.
As diferenças se acentuaram ainda mais quando, siderado pelo sucesso de Michael Jackson, Jagger resolveu “pegar carona’ em uma negociação de contrato com a CBS para viabilizar sua sonhada carreira solo. Os ânimos se exaltaram quando, ao fim de Dirty Work, Mick se negou a excursionar com os Stones partindo para uma tour de divulgação de seu próprio álbum. O fim da banda ficou novamente por um fio.
Embora tudo esteja mais ou menos no lugar desde 89, quando apararam as arestas e voltaram ao velho esquema, dessa vez turbinadas por turnês gigantescas, que inclusive os trouxeram pela primeira vez ao Brasil, em janeiro de 1995, fica claro que os Stones hoje são muito mais uma empresa que explora um imenso portfólio musical do que exatamente um grupo. Até mesmo na questão de forjar uma imagem, pois mesmo Richards embora já há mais de 30 anos restritos aos cigarros (convencionais ou não) e aos drinques, ainda pousa de junk incorrigível, como já foi um dia.
Em resumo, “Vida”  é um testemunho de alguém que esteve no olho do furacão e voltou para contar a história. Chega a ser curioso que durante boa parte da década de 70, as publicações musicais divulgassem anualmente uma espécie de bolsa de apostas sobre os astros que provavelmente não emplacariam vivos o ano seguinte. Keith Richards frequentemente encabeçava a lista.  Como se sabe, as pedras seguem rolando e não há sinais de limo.


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