Cotação : 5 estrelas
Eu me lembro de Clara,
vestida de branco, descalça, com os cabelos revoltos, dançando , girando e
cantando no palco do "Cartas e Cartazes", quadro final do Programa
Raul Gil, no SBT, por volta das 6 da tarde de um sábado qualquer de 1982. Para um
criança de 7 anos, a visão era algo perturbadora, mas a intensidade da imagem
não deixava dúvidas : tratava-se de uma força da natureza.
Lembro também de meu pai
ouvindo no rádio as matérias sobre o velório de Clara, na quadra da portela, em
abril de 83. Essas lembranças se misturam aos discos de vinil, estampados com o
selo da velha Odeon, que eram empilhados a tantos outros como Roberto Ribeiro,
João Nogueira e Paulinho da Viola ( da mesma gravadora), além do imbatível
Martinho da Vila (esse, da RCA Victor)que se alternavam na trilha sonora lá de
casa.
A agonia da cantora foi
acompanhada feito novela, com direito até mesmo a um esquemático desenho,
exibido no Jornal Nacional, contando como ela, em coma profundo após um choque
anafilático em meio a uma operação para retirada de varizes,se agarrava
inconscientemente ao tênue fio de sua vida, mantida aquela altura por
aparelhos. Do lado de fora da clínica, hordas de fãs se juntavam a místicos,
amigos (entre os quais se destacava a então Baby Consuelo, atual Baby do Brasil,
mandando "rás de positividade e luz" para Clara), parentes e
jornalistas, na atmosfera meio circense de uma longa vigília.
Essas enevoadas e confusas
memórias vem à tona após a leitura de "Clara Nunes", a densa
biografia escrita por Vagner Fernandes que nos revela uma outra Clara, a ainda
tímida cantora iniciante, vinda do interior (onde foi personagem central de uma
trama trágica, que dá ares de saga ao livro) e que, sob a tutela do onipresente
Carlos Imperial, tentou emplacar como jovem guardista de segunda escalão,
passando por alguns constrangedores bolerões até, finalmente, encontrar-se com
o samba, alcançando o primeiro sucesso com "Você passa e eu acho
graça", parceria de Imperial com o lendário e, na época em seus momentos
derradeiros na carreira, Ataulfo Alves.
Mas Clara só se encontrou
realmente a partir de 1971, quando abraçou o autêntico samba carioca guiada por
seu mentor, o radialista Adelzon Alves ( a quem a história ainda há de fazer
justiça como um dos maiores incentivadores da nossa cultura, em particular do
samba) e fez o seu primeiro grande disco. Poucos anos depois, em 1975,
estouraria com mais de cem mil de cópias do álbum "Claridade", marca
inédita para uma mulher.
Por tudo isso, a imagem de
Clara Nunes, que é nome de rua em Madureira, segue forte no imaginário popular.
Como a sereia de canção, da qual a pisada na areia, fez o mar serenar.