domingo, 12 de agosto de 2012

O Mar Serenou



Cotação : 5 estrelas



Eu me lembro de Clara, vestida de branco, descalça, com os cabelos revoltos, dançando , girando e cantando no palco do "Cartas e Cartazes", quadro final do Programa Raul Gil, no SBT, por volta das 6 da tarde de um sábado qualquer de 1982. Para um criança de 7 anos, a visão era algo perturbadora, mas a intensidade da imagem não deixava dúvidas : tratava-se de uma força da natureza.

Lembro também de meu pai ouvindo no rádio as matérias sobre o velório de Clara, na quadra da portela, em abril de 83. Essas lembranças se misturam aos discos de vinil, estampados com o selo da velha Odeon, que eram empilhados a tantos outros como Roberto Ribeiro, João Nogueira e Paulinho da Viola ( da mesma gravadora), além do imbatível Martinho da Vila (esse, da RCA Victor)que se alternavam na trilha sonora lá de casa.

A agonia da cantora foi acompanhada feito novela, com direito até mesmo a um esquemático desenho, exibido no Jornal Nacional, contando como ela, em coma profundo após um choque anafilático em meio a uma operação para retirada de varizes,se agarrava inconscientemente ao tênue fio de sua vida, mantida aquela altura por aparelhos. Do lado de fora da clínica, hordas de fãs se juntavam a místicos, amigos (entre os quais se destacava a então Baby Consuelo, atual Baby do Brasil, mandando "rás de positividade e luz" para Clara), parentes e jornalistas, na atmosfera meio circense de uma longa vigília.
Essas enevoadas e confusas memórias vem à tona após a leitura de "Clara Nunes", a densa biografia escrita por Vagner Fernandes que nos revela uma outra Clara, a ainda tímida cantora iniciante, vinda do interior (onde foi personagem central de uma trama trágica, que dá ares de saga ao livro) e que, sob a tutela do onipresente Carlos Imperial, tentou emplacar como jovem guardista de segunda escalão, passando por alguns constrangedores bolerões até, finalmente, encontrar-se com o samba, alcançando o primeiro sucesso com "Você passa e eu acho graça", parceria de Imperial com o lendário e, na época em seus momentos derradeiros na carreira, Ataulfo Alves.

             Mas Clara só se encontrou realmente a partir de 1971, quando abraçou o autêntico samba carioca guiada por seu mentor, o radialista Adelzon Alves ( a quem a história ainda há de fazer justiça como um dos maiores incentivadores da nossa cultura, em particular do samba) e fez o seu primeiro grande disco. Poucos anos depois, em 1975, estouraria com mais de cem mil de cópias do álbum "Claridade", marca inédita para uma mulher.

Por tudo isso, a imagem de Clara Nunes, que é nome de rua em Madureira, segue forte no imaginário popular. Como a sereia de canção, da qual a pisada na areia, fez o mar serenar.