domingo, 18 de dezembro de 2011

Metendo o pé na porta : Pilatos, a obra prima antiliterária de Carlos Heitor Cony.

Cotação : 5 estrelas

Em 1972, Cony já era um escritor e jornalista consagrado. Autor de oito romances até então, o último, “Pessach, a travessia”,lançado 5 anos antes, já havia sido um divisor de águas em sua carreira, pois Cony metia a mão no vespeiro que era a luta armada, não necessariamente endossando sem críticas a causa esquerdista. Mal sabiam seus leitores e admiradores , que a grande ruptura de Cony ainda estava por vir. Naquele ano, ele colocou o ponto final em sua grande obra. O mais iconoclasta de seus romances, o que seria o seu pedido irrevogável de demissão da literatura.
Ruy Castro em seu “O Leitor Apaixonado”, dedica a seguinte descrição a “Pilatos” :
“(...) Uma narrativa absurda, pornográfica, escatológica, um romance para acabar com os romances que ele ainda podia ser tentado a escrever. Um salto sem rede, um suicídio literário, e a prova de que falara sério nos livros anteriores, que já apontavam para a falta de sentido da família, da sociedade e do resto.”
            Definitivamente, “Pilatos” era tudo isso e muito mais. Sua editora ficou 2 anos se decidindo em publicar ou não o livro, só o fazendo em 1974, assustada com a virulência do romance.
 A história de um personagem totalmente à margem da sociedade, praticamente um mendigo, que teve o seu órgão genital decepado em um acidente e, que desde então, o carrega em uma compota e o defende como o seu maior bem, é recheada de momentos genialmente elaborados, causando por vezes choque e repulsa, mas também profunda admiração pela plenitude de um autor no amplo domínio de sua habilidade literária. Além, é claro, de muito, mas muito, humor. Esse talvez seja o traço mais marcante do livro.
            Ao personagem principal, se juntam outras figuras bizarras que o acompanham em suas aventuras pelo submundo do Rio de Janeiro : Um fascista priápico, com veleidades de escritor (talvez por isso, batizado de Dos Passos); um jovem esquerdista permanentemente desligado; um aristocrata falido que faz suas necessidades em uma lata de margarina e um velho demente e esfomeado, que por várias vezes tenta surrupiar o falo da compota, supondo ser uma salsicha.
            Como bem disse Otto Maria Carpeaux, “Pilatos” não tem paralelo em nenhum outro trabalho do autor, quiça, de qualquer outro da literatura brasileira ou universal. Com algum esforço, podemos identificar ecos desse mesmo espírito demolidor em alguns livros posteriores, como o recente “Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes  ou ainda “Confissões de Ralfo”, de Sérgio Sant`Anna. Talvez, alguns títulos de Pedro Juan Gutierrez ou de Bukowski possam compartilhar dessa mesma esfera.
            Cony pretendia uma interrupção definitiva de suas atividades de ficcionista. Quase conseguiu. Seu silêncio durou 22 anos até a publicação do premiado e tocante “Quase Memória”. A partir daí voltou à ativa, embora seja na verdade um novo autor. Um renascimento.  Ninguém lava as mãos impunemente.