sábado, 29 de dezembro de 2012

Descendo do umbuzeiro


Cotação : 5 estrelas


Uma história ocorrida na infância ilustra com perfeição a personalidade política de Getúlio Vargas.

Em uma tarde de 1896, o velho Manuel Vargas recebia em sua estância alguns correligionários em uma das intermináveis reuniões políticas que promovia. De repente, um estrondo chama a atenção de todos. O fazendeiro corre até a sala e vislumbra o retrato de Júlio de Castilhos, o grande líder caudilho gaúcho, caído no chão e semi-destruído. De imediato, o coronel Vargas parte raivoso atrás de quem cometeu o “atentado”. O autor era seu filho, então com 14 anos. Getúlio Dornelles Vargas brincava com um amiguinho da mesma idade, o moleque Gonzaga, negro agregado da fazenda, quando aconteceu o acidente. Certos de que tomariam uma surra inesquecível, Getúlio e o amigo sobem em um grande umbuzeiro nos arredores da propriedade, onde esperariam a poeira baixar.

Seu Manuel ordena aos peões que procurem os dois garotos para que sofram um corretivo. A fazenda é vasculhada, mas ninguém se lembrou de olhar nos galhos do umbuzeiro. Ao anoitecer, a raiva inicial dá origem à preocupação. Getúlio e Gonzaga haviam sumido. Do alto da árvore, o futuro governador do Rio Grande, Ministro da Fazenda e Presidente, acompanha o nervosismo do pai e o desespero da mãe em sua procura, até que no dia seguinte, penalizado pelo sofrimento dos dois, decide que já era hora de descer e, para alívio geral, é recebido com festas e lágrimas. Ninguém lembrava mais do castigo ou do pobre retrato de Júlio de Castilhos.

Pois bem, ao longo de mais de quatro décadas de vida pública, essa foi a tônica da atuação de Getúlio Vargas : esperar até o momento mais adequado para “descer do umbuzeiro”.

Lira Neto, que já se encontra no patamar dos nossos grandes biógrafos, ao lado de Ruy Castro e Fernando Morais, dá em “Getúlio- 1882-1930”, o passo inicial para a construção de um painel definitivo da vida e obra da personalidade mais importante e enigmática da história do Brasil até aqui. O próprio autor, no lançamento carioca do livro, ocorrido em maio de 2012, no Palácio do Catete, contou que esse era um velho projeto de Luís Schwarcz , o proprietário da Companhia das Letras, mas que devido à dimensão monumental da biografia, havia inibido tentativas anteriores. Escolado pelos excelentes mergulhos na vida de Maysa , Padre Cícero e de Castello Branco, Lira Neto topou o desafio.

As mais de 600 páginas desse primeiro volume traçam de maneira obsessiva todo o cenário que formatou a gênese política de Getúlio. O caudilhismo, as lutas gaúchas, aliados às ideias positivistas e aos meandros da república velha, dão ao leitor um retrato inédito do caldeirão que originou o político de São Borja.

O trabalho também é valorizado pela consulta incessante às fontes primárias, o que permitiu desfazer um equívoco histórico repetido à exaustão por outras obras que tratam de Getúlio, o suposto estupro de uma índia, seguido do assassinato de um índio, ocorrido no começo dos anos 20 e que seria atribuído a Vargas por anos a fio. Lira localizou o processo original e desfez o engano. Tratava-se de um homônimo. Gol de placa.

O autor joga luz sobre todos os aspectos do Getúlio pré 1930, estranhamente ausente dos livros escolares, o que nos permite perceber que Vargas foi sim um político fruto da República Velha e que aproveitando seu extraordinário senso de oportunidade, pegou carona no tenentismo e  no vento de mudança que representava a Revolução de três de outubro. Pelos 24 anos seguintes, o velho caudilho repetiria esse movimento muitas vezes, aguardando o momento certo de descer do umbuzeiro, como naquela tarde de 1896.