Cotação : 5 estrelas
Uma história ocorrida na infância
ilustra com perfeição a personalidade política de Getúlio Vargas.
Em uma tarde de 1896, o velho Manuel
Vargas recebia em sua estância alguns correligionários em uma das intermináveis
reuniões políticas que promovia. De repente, um estrondo chama a atenção de
todos. O fazendeiro corre até a sala e vislumbra o retrato de Júlio de
Castilhos, o grande líder caudilho gaúcho, caído no chão e semi-destruído. De
imediato, o coronel Vargas parte raivoso atrás de quem cometeu o “atentado”. O
autor era seu filho, então com 14 anos. Getúlio Dornelles Vargas brincava com
um amiguinho da mesma idade, o moleque Gonzaga, negro agregado da fazenda,
quando aconteceu o acidente. Certos de que tomariam uma surra inesquecível,
Getúlio e o amigo sobem em um grande umbuzeiro nos arredores da propriedade, onde
esperariam a poeira baixar.
Seu Manuel ordena aos peões que procurem
os dois garotos para que sofram um corretivo. A fazenda é vasculhada, mas
ninguém se lembrou de olhar nos galhos do umbuzeiro. Ao anoitecer, a raiva
inicial dá origem à preocupação. Getúlio e Gonzaga haviam sumido. Do alto da
árvore, o futuro governador do Rio Grande, Ministro da Fazenda e Presidente,
acompanha o nervosismo do pai e o desespero da mãe em sua procura, até que no
dia seguinte, penalizado pelo sofrimento dos dois, decide que já era hora de
descer e, para alívio geral, é recebido com festas e lágrimas. Ninguém lembrava
mais do castigo ou do pobre retrato de Júlio de Castilhos.
Pois bem, ao longo de mais de quatro
décadas de vida pública, essa foi a tônica da atuação de Getúlio Vargas :
esperar até o momento mais adequado para “descer do umbuzeiro”.
Lira Neto, que já se encontra no patamar
dos nossos grandes biógrafos, ao lado de Ruy Castro e Fernando Morais, dá em
“Getúlio- 1882-1930”, o passo inicial para a construção de um painel definitivo
da vida e obra da personalidade mais importante e enigmática da história do
Brasil até aqui. O próprio autor, no lançamento carioca do livro, ocorrido em maio
de 2012, no Palácio do Catete, contou que esse era um velho projeto de Luís
Schwarcz , o proprietário da Companhia das Letras, mas que devido à dimensão
monumental da biografia, havia inibido tentativas anteriores. Escolado pelos
excelentes mergulhos na vida de Maysa , Padre Cícero e de Castello Branco, Lira
Neto topou o desafio.
As mais de 600 páginas desse primeiro
volume traçam de maneira obsessiva todo o cenário que formatou a gênese
política de Getúlio. O caudilhismo, as lutas gaúchas, aliados às ideias
positivistas e aos meandros da república velha, dão ao leitor um retrato
inédito do caldeirão que originou o político de São Borja.
O trabalho também é valorizado pela
consulta incessante às fontes primárias, o que permitiu desfazer um equívoco
histórico repetido à exaustão por outras obras que tratam de Getúlio, o suposto
estupro de uma índia, seguido do assassinato de um índio, ocorrido no começo
dos anos 20 e que seria atribuído a Vargas por anos a fio. Lira localizou o
processo original e desfez o engano. Tratava-se de um homônimo. Gol de placa.
O autor joga luz sobre todos os aspectos
do Getúlio pré 1930, estranhamente ausente dos livros escolares, o que nos
permite perceber que Vargas foi sim um político fruto da República Velha e que
aproveitando seu extraordinário senso de oportunidade, pegou carona no
tenentismo e no vento de mudança que
representava a Revolução de três de outubro. Pelos 24 anos seguintes, o velho
caudilho repetiria esse movimento muitas vezes, aguardando o momento certo de descer
do umbuzeiro, como naquela tarde de 1896.