domingo, 17 de junho de 2012

Nelson dissecado em obra prima de Ruy Castro


Cotação : 5 Estrelas


É difícil resumir em palavras a minha profunda admiração por Ruy Castro. Muito mais fácil será falar do livro que inaugurou a minha relação de "leitor apaixonado" (título de seu mais recente livro) com a obra do autor.

"O Anjo Pornográfico", que eu comprei na véspera do natal de 1994, é a biografia definitiva sobre Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo e um dos grandes jornalistas de todos os tempos. A grandeza do livro está nas inúmeras passagens interessantes que através da história do escritor repassam um período significativo da vida brasileira. Na impossibilidade de resumir todas, fico com aquela que mais me emocionou.

Em 29 de dezembro de 1929, uma tragédia abalou a família Rodrigues. Roberto, um dos talentosos filhos de Mário Rodrigues, foi brutalmente assassinado por uma socialite enlouquecida que entrou de arma em punho na redação do jornal dos Rodrigues à procura do patriarca. Dias antes, o diário havia publicado uma notícia sobre sua separação, o que a deixou revoltada. Como Mário Rodrigues estava ausente, ela atirou em seu filho, hábil cartunista, que também atuava no jornal.

O fato arrasou a família, levando Mário Rodrigues à depressão e à morte, meses depois.
Em 1943, Nelson Rodrigues, que na época do assassinato do irmão era um adolescente de 17 anos, estreou a revolucionária "Vestido de Noiva", a peça que iria mudar radicalmente o teatro brasileiro de então. Nelson escrevia a peça à noite, após o expediente no jornal. Durante o dia, sua esposa datilografava o texto e imúmeras vezes ligava para a redação : "Nelson, deve ter alguma coisa errada. Eu não estou entendendo nada. É assim mesmo ?" Ele respondia : "Pode datilografar do jeito que está."

Nelson criou, pela primeira vez no nosso teatro, ações simultâneas em que o passado, o presente e a imaginação da personagem principal se alternavam no decorrer da peça.O texto chamou a atenção de um diretor refugiado da guerra, recém chegado ao país, Ziembinski, que ensaiou um grupo de teatro amador para uma apresentação única, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

No dia da estréia, Nelson estava com a família em um camarote. Extremamente nervoso, não tinha certeza se a platéia estava preparada para o que seria encenado.

Abrem-se as cortinas, começa o espetáculo. Os vários planos de ação da peça são apresentados.No fim do primeiro ato, aplausos protocolares.No segundo ato a ação se intensifica. Os aplausos do final se resumem a alguns poucos, puxados por amigos e pela família.Entra o terceiro ato, a platéia fica estupefada. Dessa vez nem sua mãe aplaudiu.Nelson a custo se mantêm no teatro até o fim da peça. Já via se desenhando o fracasso, a humilhação suprema de uma vaia monumental...

Finalmente o espetáculo termina. A cortina se fecha. Longos segundos de silêncio torturam ainda mais Nelson que, aquela altura, já quase chorava, quando lentamente irrompe um, dois , três aplausos, até desaguar em uma ovação consagradora como poucas vezes se viu no Municipal. No meio da confusão e dos "vivas e bravos" vigorosos, alguns começaram a gritar: "O autor, o autor !" Nelson, que ocupava com a família um discreto camarote, não era visto pela multidão que consagrava a sua criação. Acabou acidentalmente ignorado em seu momento mais glorioso.

Após a apresentação, o elenco foi comemorar o sucesso em um dos muitos restaurantes chiques que ficavam na Cinelândia. Nelson não foi. Tinha acabado de inventar o Teatro brasileiro moderno, mas não tinha dinheiro para a despesa. Preferiu ficar com a família e esperar a lotação para voltar para casa. Já era madrugada. Começava o dia 29 de dezembro de 1943, décimo quarto aniversário de morte de seu irmão Roberto.

Só por esse episódio "O Anjo Pornográfico" merece figurar entre as obras primas da literatura não ficcional brasileira.

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