quinta-feira, 21 de julho de 2011

A morte à espreita nos ares.

Cotação : 5 Estrelas.

Ivan Sant´Anna é um sujeito incomum. Durante quase quatro décadas foi um bem sucedido executivo do mercado financeiro, até que em 1995, deu um novo rumo à sua vida : largou tudo e foi ser escritor.
Talvez cedendo ao chamado do DNA, pois é irmão de Sérgio Sant´Anna, um dos  nossos mais aclamados ficcionistas e tio de André, um ícone da famosa “ geração 00”, Ivan se dedicou às letras com afinco, surgindo daí a sua primeira incursão no terreno da ficção, “Rapina”, um trillher, com todos os elementos dos best sellers internacionais.
 Embora bem escrito, “Rapina” deixa explícito um certo caráter comercial, que logo num primeiro momento, situou esteticamente a obra de Ivan em campo oposto aos escritos do irmão e do sobrinho.Por tudo isso, apesar de ter lido “Rapina” (que tem como tema o mercado financeiro, cenário tão conhecido do autor), nunca experimentei uma grande curiosidade sobre a obra de Ivan, ao contrário da profunda admiração que me faz alinhar entre os fãs de Sérgio.
Esse “preconceito” começou a mudar no início desse mês ao me deparar com uma matéria na revista Piauí, número 57, em que Ivan faz um longo e minucioso relato sobre o acidente envolvendo o Boeing da Gol, ocorrido em setembro de 2006. Fiquei impressionado não só pela riqueza dos detalhes, como pela clareza e a qualidade do texto.
Para quem não sabe, a Piauí é provavelmente o que de melhor há em jornalismo impresso no país. Suas matérias são referências em termos de bom jornalismo, mais especificamente do que se convencionou chamar de Jornalismo Literário. Não tive mais dúvidas : ali estava um autor de primeiro time.
Por coincidência, poucos dias depois, ao flanar pela feirinha de livros que voltou a ser montada na Praça Seans Pena (Tijuca- Rio de Janeiro), me deparo com o primeiro livro de não ficção de Ivan, lançado em 2000, e que trata, assim como na matéria da Piauí ( que na verdade é uma prévia de seu próximo livro), de acidentes aéreos, “Caixa Preta”.
Definitivamente, preconceito é coisa das mais atrasadas. Por conta disso, perdi 11 anos para conhecer o livro. Trata-se de uma obra prima.
Aviação é um tema caro à Ivan pois é uma de suas paixões, já que ele foi aviador amador durante muitos anos. Essa intimidade com a causa, aliada à uma obstinação profunda na busca de detalhes e entrevistas com personagens, temperada por uma veia fantástica de escritor, capaz de transformar as mais de 300 páginas de “Caixa Preta”  em um filme de aventura ( e , em muitos momentos, de terror), fazem a leitura fluir na mesma velocidade e emoção dos acontecimentos narrados.
Ivan investiga três dos acidentes mais terríveis da história da aviação brasileira : O primeiro (e mais famoso) foi o do vôo RG-820 que em julho de 1973 fazia a rota Rio- Paris e, poucos momentos antes de atingir o aeroporto de Orly, na capital francesa, foi acometido por um incêndio e teve que descer em uma horta nos arredores da cidade. Nesse acidente, morreram, entre outros, o cantor Agostinho dos Santos, o Senador (e Chefe do Dops durante o Estado Novo), Filinto Muller e o narrador esportivo da TV Globo, Júlio Delamare.
A segunda parte relata o seqüestro do vôo VP-375, que ao fazer o trecho Belo Horizonte- Rio de Janeiro, em setembro de 1988, foi desviado para Brasília por um trabalhador desempregado, armado com um revólver 38, e que, enlouquecido, queria jogar o avião contra o Palácio do Planalto. Aqui destaca-se a figura mais marcante do livro, o piloto (e herói) Fernando Murilo, a quem “Caixa Preta” justamente é dedicado.
Por último há o desesperador acidente do RG-254. Ocorrido quase um ano depois do seqüestro do VP-375, exatamente no dia em que o Brasil vencia o Chile no Maracanã , se classificando assim para a Copa do Mundo de 1990.
Saindo de Imperatriz, no Maranhão, rumo à Belém, um erro primário cometido pelo comandante, desviou o avião por mais de 1000 quilômetros da rota. O boeing ficou horas perdido sobre a floresta, até que teve que teve que aterrisar (cair seria o termo mais correto) sobre as árvores da mata fechada do interior do Mato Grosso. O inferno vivido por tripulantes e passageiros é recontado em detalhes apavorantes.
Disso tudo, o que mais chama a atenção na primorosa obra de Ivan Sant´Anna e talvez seja o grande motivo de ela ser tão especial, é a dimensão humana que o autor consegue dar as tragédias. Em cada relato (baseado nas investigações e sobretudo no testemunho dos sobreviventes) os pequenos dramas da vida de cada um não são negligenciados. Ao avançar das páginas, vamos conhecendo aquelas pessoas e, não raro, se emocionando e torcendo por elas. Infelizmente, para muitos a torcida não surtiu efeito.
Como se não bastasse, há ainda um minucioso levantamento do que aconteceu aos sobreviventes após os respectivos acidentes, além do levantamento completo das fontes que fundamentam o livro.
Uma obra seminal, que testemunha os segundos angustiantes em que a vida entra em luta corporal com a morte. Tudo registrado pelas caixas pretas.

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